Existem dois mecanismos cujo desenvolvimento deficitário compromete o objetivo último da leitura: a extração do significado do texto. Trata-se da conversão grafema-fonema e do reconhecimento visual automático das palavras. Dois tipos principais de dificuldade podem ser esperados: o leitor pode ter dificuldade na aprendizagem ou na automatização da conversão grafema-fonema e assim não consegue fazer uma leitura com precisão ou, mesmo tendo uma leitura com precisão, pode não conseguir ter uma leitura fluente.
A leitura é uma atividade complexa em que muitas coisas têm de correr bem para que um aluno se torne um leitor fluente, de sucesso e motivado. Os alunos têm de reconhecer que figuras tão parecidas como “c” e “e” (que apenas diferem num traço horizontal mínimo) ou “b” e “d” (que têm a mesma forma visual mas diferem na orientação) são letras diferentes; formas visuais tão diferentes como “A” e “a” ou como “R” e “r” são a mesma letra. Têm de aprender que as letras correspondem a sons, que alguns conjuntos de letras (e não uma letra apenas) correspondem a um único som (por exemplo, os dígrafos NH ou CH) e que uma mesma letra pode ser lida com sons diferentes, não sendo por isso verdade que para cada letra haja um único som. Têm ainda de ser capazes de fundir estes sons em unidades maiores, em sílabas e em palavras; compreender o significado das palavras e das frases e de parágrafos; têm de extrair o significado de textos de vários géneros literários.
Além deste conjunto de processos, os alunos têm ainda de ler com fluência suficiente para não perder “o fio à meada”, ou seja, têm de compreender e manter em memória de trabalho o que foi lido e integrá-lo com o que estão a ler no momento. A compreensão de um texto pode ser uma atividade avassaladora se a leitura for lenta, laboriosa e a atenção estiver totalmente concentrada na decodificação, restando, por isso, pouco espaço mental para a interpretação do que está a ser lido. É por isso que a rapidez na leitura correta é um bom barómetro do desenvolvimento desta capacidade, uma vez que indica quão automático o processo de decodificação é.
A rapidez na leitura não é, no entanto, um fim em si mesmo, mas a indicação de que a leitura é automática. Quando esta automatização ocorre, libertam-se recursos atencionais que podem ser orientados para outros processos mentais, incluindo a compreensão. Além disso, os alunos também precisam de ter vocabulário e conhecimento linguístico suficiente para compreender o que leem (por exemplo, precisam saber o que quer dizer “sinónimo” para perceber o significado da frase “gracioso é sinónimo de bonito”) e competências de metacognição para extrair o significado de um texto e relacioná-lo com as suas vivências do mundo (por exemplo, para compreender onde reside o humor da expressão “ter muita lata”). Se alguma coisa correr mal em um ou mais destes processos, os alunos terão dificuldades na aprendizagem da leitura. Dada a multiplicidade de fatores envolvidos, é até surpreendente que o número de alunos com dificuldade não seja maior.
Existem dois mecanismos cujo desenvolvimento deficitário compromete o objetivo último da leitura: a extração do significado do texto. Trata-se da conversão grafema-fonema e do reconhecimento visual rápido das palavras. A sua importância modifica-se ao longo da aprendizagem da leitura. A criança começa por usar predominantemente a decodificação sequencial da palavra por conversão grafema-fonema, que no início é laboriosa, lenta e explícita, e, à medida que treina este mecanismo, começa a conhecer mais palavras escritas e a ser mais rápida no seu reconhecimento visual automático.
Aprender a ler é como aprender a andar de bicicleta: primeiro é uma atividade extenuante em que é necessário manter o equilíbrio, olhar para a frente, conseguir dar mais do que uma pedalada, mas que, com treino sistemático, se torna uma atividade gradualmente mais automática e divertida. Contudo, aprender a ler também é diferente de andar de bicicleta. Embora o reconhecimento visual de palavras familiares seja fundamental para uma leitura fluente, não é suficiente, uma vez que ao longo da vida surgem palavras novas para as quais a decodificação grafema-fonema será sempre necessária. Assim, é importante compreender como a criança progride para esta forma mais avançada de reconhecimento visual da palavra e como é que o método de ensino pode favorecer esta progressão e a utilização otimizada dos dois mecanismos de leitura.
Estes mecanismos têm sido contemplados em vários modelos sobre a aquisição e desenvolvimento da leitura. A teoria para o desenvolvimento da leitura elaborada por Uta Frith (1985) é um dos modelos mais conhecidos. Diz que a aquisição da leitura decorre ao longo de três fases, que correspondem a três estratégias distintas, desde o momento em que a criança inicia o contacto com o alfabeto até ao momento em que se torna um leitor competente, apto a ler correta e fluentemente:
a) Fase logográfica, em que a criança reconhece palavras com base nas características visuais distintivas ou em pistas contextuais, não podendo ainda ser considerada um leitor.
b) Fase alfabética, em que a criança usa regras de correspondência grafema-fonema para ler as palavras.
c) Fase ortográfica, em que as palavras são reconhecidas como conjuntos grafémicos, integrando unidades morfémicas (Frith, 1985).
A fase alfabética é alcançada quando os conhecimentos grafofonémicos adquiridos pela criança lhe permitem fazer corresponder fonemas às letras constituintes da palavra. Nesta fase, a criança é capaz de ler, ou seja, de decodificar qualquer estímulo que lhe é apresentado e que obedeça às regras de correspondência grafema-fonema, mesmo que tenha um significado desconhecido (por exemplo: “paraneca”). Este tipo de leitura, que continua a ser importante ao longo da vida sempre que nos deparamos com palavras novas, pode ser explicado pelo mecanismo ou via sublexical (ou de correspondência grafema-fonema) do modelo das duas vias de leitura (Coltheart, Rastle, Perry, Langdon, & Ziegler, 2001).
Para a leitura se tornar fluente e automática, é necessário que esta se faça a partir do acesso a uma espécie de armazém mental onde estão arquivadas as palavras visuais conhecidas – o léxico ortográfico. Este acesso automático permite que o leitor não tenha de recorrer ao processo mais lento de decodificação grafema-fonema. O reconhecimento visual rápido da palavra escrita permite ao leitor aceder automaticamente ao seu significado e à sua pronúncia. Este tipo de leitura não envolve o estabelecimento de correspondências individuais entre grafemas e fonemas, mas exige que informação sobre a palavra visual e suas características visuo-espaciais (por exemplo, identidade e posição do conjunto de letras, configurações e comprimentos de palavras) estejam arquivadas em memória. Tal é especialmente importante para uma leitura correta de palavras com letras que escapam às regras de correspondência grafema-fonema como “linguística” ou “táxi”, cuja pronúncia correta não é linearmente possível se não conhecermos estas palavras, ou seja, se não as tivermos armazenadas no léxico ortográfico. Esta estratégia de leitura corresponde à fase ortográfica da teoria proposta por Frith e poderá ser explicada pela via lexical (de acesso direto ao léxico) do modelo das duas vias (Coltheart et al., 2001).
De acordo com estas fases, dois tipos principais de dificuldade podem ser esperados. Por um lado, o leitor pode ter dificuldade na aprendizagem e/ou automatização dos conhecimentos grafofonémicos e assim não consegue fazer uma leitura com precisão, apresentando dificuldades mesmo na leitura de palavras que obedecem às regras de correspondência grafema-fonema. Por outro lado, mesmo tendo uma leitura com precisão, não consegue ter uma leitura fluente, revelando especiais dificuldades na leitura de palavras com letras que escapam às regras de correspondência grafema-fonema, e também nos processos de reconhecimento lexical.
Para uma recuperação atempada destas eventuais dificuldades é fundamental que, logo no início da aprendizagem formal da leitura e mesmo no período que a antecede, se proceda à identificação precoce de quem possa estar em risco de vir a desenvolver problemas na leitura.
Autoria: Alexandra Reis, Luís Faísca e Tânia Fernandes Edição: Andreia Lobo
Publicação: 22.setembro.2020
A avaliação com vista ao diagnóstico deve ser abrangente, incluindo não só a leitura, a escrita e capacidades que lhes estão associadas, mas também um conjunto diversificado de domínios cognitivos que podem estar prejudicados. É o balanço entre as áreas fortes e fracas, tanto ao nível do funcionamento cognitivo como académico, que vai contribuir para se traçar o perfil da criança e promover estratégias de intervenção personalizadas.
Todos os programas de intervenção eficazes têm cinco pontos em comum que podem ser usados como estratégias com alta probabilidade de eficácia na instrução de crianças com e sem dificuldades de leitura: intervenção focada, reduzido número de participantes, elevada intensidade, método fónico, atividades ativas e estruturadas de leitura.
A identificação mais tardia de défices de leitura, depois dos primeiros anos escolares, e estratégias de remediação que são, em larga medida, aulas tradicionais com atividades passivas, em grandes grupos, são ingredientes de uma receita para o fracasso.
Aprender a ler é como aprender a andar de bicicleta: primeiro é uma atividade extenuante (manter o equilíbrio, olhar para a frente, conseguir dar mais do que uma pedalada) mas que, com treino sistemático, se torna depois uma atividade automática. Tal como andar de bicicleta, no início é difícil! Por isso se demora muito tempo a ler.
Para extrair as ideias principais, a criança tem de compreender o que está a ler. Mas se a leitura for lenta, laboriosa, e a atenção estiver concentrada na decodificação, restará pouco espaço mental para interpretar o que está a ser (e foi) lido. Assim, extrair ideias ou resumir o que se leu será um desafio avassalador. A rapidez na leitura indica que a leitura é automática e é essa rapidez que permite à criança ter espaço mental disponível para compreender o que leu. Para que a automatização da decodificação ocorra, o ensino da leitura (i.e., do princípio alfabético, das regras de correspondência grafema-fonema e das suas exceções) e o seu treino direto têm de ser intensivos, sistemáticos, continuados e explícitos, com vários momentos de leitura e atividades ativas realizadas pela criança (ver Por uma intervenção precoce e aprendizagem da leitura ativa).
A leitura fluente, ou seja, uma decodificação automática e rápida, permite libertar recursos atencionais que podem ser orientados para outros processos mentais, incluindo a compreensão. Só assim percebemos o que lemos. Contudo, a compreensão de textos não depende apenas da decodificação automática. Também depende do conhecimento linguístico oral e do vocabulário. Dito de outro modo, temos de conhecer o significado das palavras (vocabulário) para percebermos o que lemos. Por exemplo, na frase “a diatribe foi nefasta para o António”, se não conhecermos o significado de <diatribe> ou de <nefasto>, podemos até ler rapidamente, mas não conseguiremos entender por que razão na imagem que acompanha a frase está um menino (supostamente o António) a chorar! Portanto, se por um lado, a decodificação automática facilita a compreensão, a compreensão depende das competências linguísticas orais (incluindo o vocabulário), o que não se circunscreve ao domínio da leitura.
Aprender a ler implica decodificar. Uma criança que usa estratégias de adivinhação, como no exemplo dado (ver Despiste e intervenção precoce - Quadro 2), não percebeu ainda o que é ler. Ler não é adivinhar, ler é fazer corresponder toda a sequência escrita (tendo em conta as letras e a ordem das letras que constituem essa sequência; ROCA e ORCA são diferentes) à sua expressão oral, usando as regras de correspondência grafema-fonema. Para que a criança entenda este código, o ensino do princípio alfabético e das regras de correspondência grafema-fonema e das suas exceções tem de ser explícito, sistemático, continuado e repetido e deverá conter cinco fatores-chave:
1. Consciência fonémica;
2. Treino fónico do princípio alfabético e das correspondências grafema-fonema;
3. Compreensão oral
4. Fluência de leitura;
5. Vocabulário (ver Por uma intervenção precoce e aprendizagem da leitura ativa).
As dificuldades na aprendizagem da leitura dependem também do grau de complexidade do código ortográfico em que se aprende a ler e a escrever. Por exemplo, em Português Europeu, o som /s/ (como em ) pode ser escrito com recurso a vários grafemas, como ilustrado na palavra <SUCESSO>, e o grafema <o> pode corresponder a fonemas diferentes, como em <BOCA> e <TOCA>, o que torna mais complexo o código do que em ortografias transparentes. É a esta complexidade que habitualmente se chama “casos de leitura”, que envolvem na realidade vários tipos de casos.
Exemplos:
1. Em “an/am” e “rr/r”, para que a leitura (ou a escrita) seja bem-sucedida, a criança tem de saber explicitamente quais são as regras a usar. Estes casos dizem respeito à necessidade de conhecer as regras contextuais e posicionais de correspondência grafema – fonema. Pensemos nestas regras como as de um jogo: se não as soubermos explicitamente, nunca saberemos se estamos a jogar bem ou a fazer batota. Sempre que uma regra possa ser explicitada, deve sê-lo de forma repetida, sistemática e continuada. Não escondamos da criança as regras que a podem ajudar a dominar a leitura e a escrita mais facilmente. Por exemplo, <am> e <an> podem corresponder ambos ao som /ã/, a diferença é que o primeiro se adota quando a consoante que se segue é <b> ou <p> (e.g., campo; tombo), enquanto o segundo se adota nos outros casos (e.g., canto; tonto). Para a leitura destes grafemas complexos, em que não é uma letra, mas um conjunto de letras que corresponde a um som, é igualmente útil ter já introduzido outros grafemas complexos que não colocam dificuldades contextuais. Por exemplo, os dígrafos <nh> e <ch> não devem ser deixados para o fim. Estes grafemas complexos correspondem sempre a um único som de forma biunívoca e permitem à criança compreender que um conjunto de letras pode corresponder a um som (e vice-versa). O treino permite mais tarde que a criança entenda facilmente que <am> pode corresponder ao som /ã/.
2. Existem os casos em que a ligação entre a expressão falada e a escrita não é linear, quando um grafema não corresponde a um único fonema e vice-versa.
3. Por último, os reais “casos” em que não existe uma regra. O grafema <x> é o grafema que coloca esta questão em Português, uma vez que pode corresponder a vários fonemas sem uma regra clara e de fácil explicitação. Palavras como <peixe>, <máximo>, <táxi>, <exame> serão lidas corretamente de forma sistemática só quando forem conhecidas da criança. Aqui a regra é explicitar à criança que não há uma verdadeira regra, que é preciso conhecer a forma escrita exata destas palavras para que as possamos ler e escrever corretamente. Em outras situações, a raiz morfológica da palavra é a razão da irregularidade, a desobediência à regra. Por exemplo, <linguística>, em que o <u> que segue o <g> é lido, não faz parte do grafema <gu>, porque a palavra deriva da palavra <língua>. Apenas o ensino explícito e o treino sistemático, continuado e consistente podem ajudar a criança a superar estes desafios.
Castles, A., Rastle, K., & Nation, K. (2018). Ending the Reading Wars: Reading Acquisition from Novice to Expert. Psychological Science in the Public Interest, 19(1), 5-51. doi: 10.1177/1529100618772271
Dehaene, S. (2012). Os neurónios da leitura. Como a ciência explica a nossa capacidade de ler. Porto Alegre: Editora Penso. (Tradução para o português do Brasil. Edição original de 2009)
Morais, J. (1997). A arte de ler: Psicologia cognitiva da leitura. Lisboa: Edições Cosmos.
No início da aprendizagem, quer a decodificação (leitura) quer a codificação (escrita) exigem atenção e esforço. Não são processos imediatos. Mas é através deles que progressivamente se constrói essa fabulosa ferramenta mental que é saber ler e escrever sem esforço e com fluência.
Tal como ao aprender a andar de bicicleta nos tornamos capazes de ter equilíbrio sem pensar (automaticamente), também ao aprender a ler e a escrever ganhamos a capacidade de alguns processos funcionarem em piloto automático. É a aquisição de expertise, que nos torna mais autónomos e flexíveis.