Tal como ao aprender a andar de bicicleta nos tornamos capazes de ter equilíbrio sem pensar (automaticamente), também ao aprender a ler e a escrever ganhamos a capacidade de alguns processos funcionarem em piloto automático. É a aquisição de expertise, que nos torna mais autónomos e flexíveis.
1. Aquisição progressiva das habilidades de leitura e escrita
Nas feiras de ciência costuma haver uma demonstração muito popular de um fenómeno psicológico que, quase certo, garante a quem passa pela experiência uma minirevelação. “Aha, então é assim?” Se eu lhe mostrar uma palavra e lhe pedir para não a ler, parece fácil, certo? Em vez de ler, peço-lhe apenas que me diga em que cor está escrita. Se estiver escrita a azul, responde azul, a cor-de-rosa, responde rosa, a verde, verde, e assim sucessivamente. Vamos experimentar? Diga em voz alta a cor em que estão escritas as palavras a seguir.
Não é tão fácil assim, pois não?
Ser capaz de dizer o nome de uma cor é uma atividade simples, que uma criança pequena consegue fazer muito antes de entrar para a escola. Já ler é uma atividade que exige instrução e aprendizagem prévia. E, todavia, na situação acima, ler parece mais fácil do que nomear a cor.
Para responder corretamente “verde, rosa, azul, vermelho”, houve certamente alguma hesitação. Pode até ter-se enganado e respondido “azul - ah, não verde”. Ou seja, para responder corretamente, é preciso inibir a resposta preponderante: a de ler a palavra em vez de dizer a cor em que está escrita. Este efeito é um dos mais robustos em psicologia e chama-se efeito de Stroop, em homenagem ao psicólogo que o identificou (já em 1935).
O efeito de Stroop acontece porque, para um leitor hábil, a leitura de palavras familiares se tornou um processo automático. A palavra lida impõe-se ao pensamento de forma quase imediata e sem querer. É um processo rápido e não depende da nossa intenção, pois na tarefa anterior o que pretendíamos era dizer o nome da cor e não ler a palavra. Estamos nos antípodas da leitura lenta, esforçada, subjetivamente difícil que caracteriza as fases iniciais da aprendizagem. O progresso na aprendizagem da leitura consiste justamente na passagem da leitura enquanto processo controlado, lento e deliberado, para um processo automático que acontece sem esforço e rapidamente. A leitura de palavras, principalmente se familiares, torna-se fácil e sem erros, e a leitura de texto torna-se fluente.
Um processo de aprendizagem com sucesso – tal como acontece na leitura – permite a passagem da escrita lenta e esforçada, com o traço inseguro, para uma escrita de palavras ortograficamente corretas e com traço seguro, organizadas em frases e textos produzidos com alguma fluência.
2. A importância da aquisição progressiva das habilidades de leitura e escrita
A passagem da leitura e da escrita de um domínio incipiente – que exige atenção concentrada e esforço cognitivo na decodificação fonológica ou na codificação -, para um domínio pleno – em que tanto a leitura como a escrita de palavras se conseguem, em larga medida, graças a processos automáticos – é o grande objetivo dos primeiros anos da escolarização. Porquê? Porque só a leitura que não precise de recorrer a muito esforço cognitivo permite que o leitor possa tirar partido do texto para o interpretar, para apreciar a sua beleza, e para se tornar criativo enquanto leitor. E também para ter acesso a um novo patamar: já não o de aprender a ler, mas sim o de ler para aprender.
De modo semelhante, na escrita só a capacidade de escrever palavras sem despender muito tempo e energia a deduzir qual é a forma correta da palavra, ou a procurá-la demoradamente na memória, é que liberta a mente para pensar melhor no conteúdo do que se está a escrever e articulá-lo em frases e texto com melhor qualidade.
3. A ciência mostra
Os estudos sobre a aquisição de expertise mostram que, para se atingir um grau razoável de eficácia numa determinada habilidade, depois da fase cognitiva inicial, são fundamentais a fase associativa e a fase autónoma.
Na fase associativa, são exercitadas atividades ou utilizados conhecimentos implicados na habilidade em aquisição, de modo a tornar mais robusto o conhecimento e a permitir a execução das atividades relevantes com menos esforço cognitivo. São fortalecidas as associações entre representações e/ou rotinas sensoriomotoras que fazem parte do todo coordenado que constitui a nova expertise, tornando-a cada vez mais eficaz e pronta a usar. É como se fosse uma fase de rodagem. A fase que era necessária antes de se poder usar plenamente um carro novo: pôr em funcionamento, rodar a engrenagem para que ela pudesse depois vir a ser usada na velocidade máxima, sem vícios de mau uso.
A consolidação crescente dos vários processos implicados na expertise, por sua vez, vai permitir alcançar a terceira e última fase de aquisição. Na fase autónoma, o mecanismo sensoriomotor e/ou neurocognitivo está instalado e funciona de modo automático ou quase automático. Isto é, sem precisar de muito esforço cognitivo, tempo e atenção dedicada.
A engrenagem funciona, está bem oleada, podemos confiar nela para nos levar mais além sem necessidade de plano prévio. Como, por exemplo, um decorador experiente que, ao entrar numa sala, logo refere que “mudando a mesa para ali, encostada de lado àquela parede, o espaço resulta maior”. Esta apreciação, quase imediata e aparentemente sem ‘pensar’, só foi possível porque anos de prática continuada em decoração permitiram o processamento automatizado de padrões específicos associados a possíveis soluções de organização do espaço.
A aquisição da leitura e da escrita requer a consolidação de processos específicos (fase associativa) que culminem na possibilidade de processamento automatizado (fase autónoma) de operações críticas que ligam a linguagem falada à linguagem escrita.
No caso da aprendizagem do português escrito, trata-se de, a partir do conhecimento das correspondências fonema-grafema simples e unívocas – o fonema /f/ escreve-se sempre com a letra <f> e a letra <f> lê-se sempre /f/; o fonema /nh/, como em ‘ninho’, escreve-se sempre com o grafema complexo <nh> e a sequência <nh> lê-se sempre /nh/ –, aprender também as correspondências dependentes de contexto ou da morfologia e as formas de palavras chamadas irregulares, por não ser aparente deduzir como se escrevem ou leem a partir de regras contextuais.
Autoria: São Luís Castro Edição: Andreia Lobo
Publicação: 22.setembro.2020
Não se deve fazer esse tipo de grupo de palavras para exercitar a escrita ou até a leitura. Um exercício assim não está a dar ao aluno a oportunidade de ter prática consistente numa determinada correspondência grafema-fonema. É a prática consistente – ou seja, o treino do mesmo tipo de correspondência – que permite criar ou fortalecer o estabelecimento de uma determinada representação ortográfica no sistema mente-cérebro. Se o conjunto de estímulos não for consistente, estamos simplesmente a fazer um treino de memorização arbitrária que confunde mais do que ilumina.
Suponhamos uma pianista principiante a aprender a tocar a sua primeira peça. Vai treinar a tocar as notas certas, nas teclas certas. Para praticar, não vai ‘experimentar’ a tocar nas teclas ao lado, na esperança de isso lhe permitir ter melhor controlo motor sobre as notas certas.
Do mesmo modo, para propiciar experiências de leitura e escrita que conduzam ao estabelecimento de procedimentos automatizados, é fundamental a prática maciça de conjuntos coerentes. Por exemplo, num primeiro momento, exercitar um conjunto variado de palavras partilhando uma mesma grafia. Por exemplo: “girafa, geleia, gigante, gelado”, etc. Palavras iniciadas por “ge-” ou “gi-”. E só depois chamar a atenção explícita para a grafia rara “jeito”. O mesmo para o conjunto de palavras começadas por “to-” lido como /tu/, sem misturar com a grafia “tu-”, decorrente da aplicação direta do princípio alfabético (<t> + <u> é sempre igual a /tu/). A escolha de conjuntos de palavras consistentes pode ser feita facilmente recorrendo a bases de dados lexicais como, por exemplo, o PORLEX (ver mais informações aqui).
Embora tenda a ser usada com alguma frequência, uma tarefa assim não é recomendável. Isto porque basta ver uma vez uma palavra escrita de determinada maneira para criar um traço mnésico – não necessariamente robusto, mas ainda assim passível de confundir e enfraquecer o traço mnésico correto. Ver num livro ou num conjunto de palavras para praticar, num exercício ainda por cima fornecido pelo professor, formas ortográficas erradas, é contraproducente: em vez de fortalecer, enfraquece a representação mental apropriada da grafia da palavra ou das correspondências grafema-fonema adequadas naquele contexto.
Festas, I. & Castro, S. L. (2013). Aprendizagem em áreas de conhecimento: leitura, escrita, compreensão, composição, ciências e estudos sociais. In F. H. Veiga (Org.), Psicologia da Educação: Teoria, Investigação e Aplicação (pp. 395-443). Lisboa: Climepsi Editores.
Gomes, I. (2001). Inventário das correspondências grafemas-fones (direção da leitura) e inventário das correspondências fones-grafemas (direção da escrita) do Português Europeu (Quadros 53 e 55). In Gomes, I. (2001) Ler e escrever em Português Europeu (Vols. 1-2). Dissertação de doutoramento em Psicologia, Universidade do Porto - Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação.
Morais, J. (2012). Criar Leitores. O ensino da leitura - para professores e encarregados de educação. Porto: Livpsic.
Porlex - uma base de dados lexical em formato Excel que permite procurar palavras com base em diferentes critérios ortográficos, fonológicos e morfológicos. Para uma apresentação mais detalhada, ver: Gomes, I. & Castro, S. L. (2003). Porlex, a lexical database in European Portuguese. Psychologica, 32, 91-108.
No início da aprendizagem, quer a decodificação (leitura) quer a codificação (escrita) exigem atenção e esforço. Não são processos imediatos. Mas é através deles que progressivamente se constrói essa fabulosa ferramenta mental que é saber ler e escrever sem esforço e com fluência.
Leitores fluentes são capazes de identificar as palavras de forma precisa e automática. Libertam, assim, recursos cognitivos para a compreensão da leitura. Por essa razão, a fluência de leitura tem de ser sistematicamente trabalhada em contexto de sala de aula.
Tornar a escrita fluente permite que os escritores possam focar a atenção naquilo que verdadeiramente importa: na mensagem e no impacto no leitor. Este texto define fluência na escrita e dá conta como automatizar os processos básicos na escrita como a ortografia e a caligrafia são uma condição necessária para ganhar fluência na escrita.