Tornar a escrita fluente permite que os escritores possam focar a atenção naquilo que verdadeiramente importa: na mensagem e no impacto no leitor. Este texto define fluência na escrita e dá conta como automatizar os processos básicos na escrita como a ortografia e a caligrafia são uma condição necessária para ganhar fluência na escrita.
1. Fluência na escrita
A fluência na escrita é uma condição importante para que um texto possa ser produzido com sentido subjetivo de facilidade e eficiência. A emergência da fluência parece depender de um acoplamento ótimo: entre as capacidades do escritor, aquilo que a criança consegue fazer, e as exigências do desafio de escrita que está a resolver, aquilo que é pedido à criança.
Vista por dentro, a experiência subjetiva do escritor num estado de fluência foi bem descrita por Csikszentmihalyi (2002) com a sua caracterização do estado de “flow”, traduzido por fluir ou experiência ótima. Quando a escrita flui, o escritor sente-se completamente absorvido pela tarefa, não dá conta do passar do tempo e a experiência é de prazer e gratificante.
Vista por fora, a fluência também pode ser lida como um indicador da eficiência com que um escritor pode produzir texto. Ser fluente a escrever pressupõe o desenvolvimento do conjunto dos processos cognitivos implicados na escrita e da sua necessária coordenação. Para informações sobre um modelo recente dos processos cognitivos na escrita, ver o modelo de Steve Graham (2018) (Leitura sugerida #5).
Frequentemente, a fluência de escrita é medida pelo número de palavras por minuto (ppm) que um escritor produz quando realiza uma tarefa particular de escrita. Enquanto valores baixos de ppm podem sinalizar problemas na produção textual, valores elevados sinalizam a desenvoltura e a automatização de alguns processos de escrita.
Contudo, não parece pedagogicamente defensável que “quanto mais elevada for a fluência, melhor”. Isto porque a escrita de um bom texto parece depender tanto de processos que funcionam melhor automaticamente como de processos de controlo, reflexivos, que implicam consciência. Os primeiros tendem a aumentar a fluência, enquanto os segundos tendem a diminuí-la. Uma evidência da interação importante entre produção e controlo está nas correlações baixas a moderadas que habitualmente são encontradas entre fluência e qualidade textual.
2. A importância da fluência na escrita
Desenvolver a fluência na escrita possibilita que ela possa decorrer de forma rápida, eficiente e aparentemente sem esforço. Basta pensar na forma como uma criança no segundo ano escreve um texto: o baixo domínio da caligrafia e da ortografia limitam a rapidez com que consegue produzir texto e prejudicam quer a extensão dos textos, quer a sua qualidade.
Automatizar a transcrição é uma condição necessária para ganhar fluência na escrita dos textos. Sem essa automatização, a criança tem a sensação de que o seu pensamento é bastante mais rápido do que a mão que escreve. Perante essa assimetria, a escrita é encarada como uma atividade lenta, aborrecida e cansativa. Tornar fluentes a caligrafia, a ortografia e também a leitura é, por isso, prioritário para promover a fluência na escrita. Ser fluente na escrita parece ser também uma condição necessária para que a escrita possa fluir e tornar-se numa atividade gratificante para o escritor.
3. A ciência mostra
O número de palavras que um escritor consegue escrever por minuto é fortemente constrangido pela automatização da transcrição, isto é, pelo seu domínio da ortografia e da caligrafia. Conhecer a forma ortográfica da palavra e ser capaz de executar sem esforço os gestos motores associados à ferramenta de escrita são inicialmente obstáculos sérios ao desenvolvimento da fluência na escrita. Um estudo português de 2015 mostrou que o número de palavras por minuto (ppm) produzidas por crianças do 2.º ano, na escrita de histórias, é três vezes inferior ao produzido por crianças no 7.º ano, respetivamente, 5 vs. 15 ppm.
Tipicamente, apenas metade do tempo na escrita de um texto é dedicado à execução dos gestos motores associados à escrita (transcrição). O restante tempo é ocupado por interrupções da atividade de escrita. Mas isto nem sempre é evidente para o próprio escritor. Essas interrupções são conhecidas como pausas e tendem a durar mais do que dois segundos de aparente inatividade. Os períodos entre pausas são chamados períodos de execução (bursts em inglês) e a sua extensão é medida pelo número de palavras escritas nesse período.
O desenvolvimento da competência na produção textual tem um efeito assimétrico nas pausas e nos períodos de execução. A duração das pausas tende a diminuir e a extensão dos períodos de execução tende a aumentar. Comparando o 2.º e o 7.º ano de escolaridade, as pausas diminuem de dez para seis segundos e os períodos de execução aumentam de duas para seis palavras. Em média, uma criança no 2.º ano escreve duas palavras, para dez segundos, escreve mais duas palavras, para dez segundos e assim sucessivamente.
A extensão dos períodos de execução é um bom indicador da competência da criança na produção de texto e da sua fluência na escrita. A duração das pausas é um bom indicador da dificuldade e da complexidade cognitiva da tarefa que a criança está a realizar. Exemplo: a duração média das pausas é tipicamente superior na escrita de textos argumentativos face à escrita de textos narrativos.
Autoria: Rui Alves Edição: Andreia Lobo Edição gráfica: Vera Antunes
Publicação: 22.setembro.2020
A escrita requer várias competências. A fluência em cada uma delas traduz-se em ganhos de fluência na escrita. Particularmente relevante para ganhar fluência na escrita é a automatização da transcrição: recuperar facilmente a ortografia das palavras e ser capaz de as caligrafar ou digitar rapidamente num teclado. Uma das melhores formas de ganhar fluência na escrita de textos é praticando a escrita de textos em múltiplas ocasiões. Os escritores reportam com frequência que a escrita só se melhora escrevendo. Reside aqui a importância de dedicar tempo à escrita de textos para que a fluência possa ser ganha.
Alves, R. A. (2019). The early steps in becoming a writer: Enabling participation in a literate world. In J. S. Horst & J. von Koss Torkildsen (Eds.), International handbook of language acquisition (pp. 567-590). London: Routledge.
Alves, R. A., & Limpo, T. (2015). Progress in written language bursts, pauses, transcription, and written composition across schooling. Scientific Studies of Reading, 19, 374-391. doi: 10.1080/10888438.2015.1059838.
Alves, R. A., Limpo, T., Fidalgo, R., Carvalhais, L., Pereira, L. A., & Castro, S. L. (2016). The impact of promoting transcription on early text production: Effects on bursts and pauses, levels of written language, and writing performance. Journal of Educational Psychology, 108, 665-679. doi: 10.1037/edu0000089
Csikszentmihalyi, M. (2002). Fluir. Lisboa: Relógio D’Água.
Graham, S. (2018). A revised writer(s)-within-community model of writing. Educational Psychologist, 53, 258-279. doi: 10.1080/00461520.2018.1481406
No início da aprendizagem, quer a decodificação (leitura) quer a codificação (escrita) exigem atenção e esforço. Não são processos imediatos. Mas é através deles que progressivamente se constrói essa fabulosa ferramenta mental que é saber ler e escrever sem esforço e com fluência.
Permitir que uma criança aprenda a norma ortográfica da língua é um objetivo básico do ensino da leitura e da escrita e tem repercussões importantes para o desenvolvimento da literacia. Aqui, abordamos as fontes a considerar no ensino da ortografia e como elas podem ser contempladas em atividades de ensino e aprendizagem.
Tal como ao aprender a andar de bicicleta nos tornamos capazes de ter equilíbrio sem pensar (automaticamente), também ao aprender a ler e a escrever ganhamos a capacidade de alguns processos funcionarem em piloto automático. É a aquisição de expertise, que nos torna mais autónomos e flexíveis.