No início da aprendizagem, quer a decodificação (leitura) quer a codificação (escrita) exigem atenção e esforço. Não são processos imediatos. Mas é através deles que progressivamente se constrói essa fabulosa ferramenta mental que é saber ler e escrever sem esforço e com fluência.
1. Os processos de decodificação e codificação numa fase inicial da aprendizagem
Ler parece imediato, para quem sabe ler bem: aí está o texto escrito, até uma só palavra, e percebemos o que quer dizer, faz-se luz. Por exemplo, estamos numa cidade desconhecida, queremos ir para o centro e não sabemos como – de repente, eis o sinal CENTRO –>, e o problema fica resolvido, vamos nessa direção. Podemos até nem ter consciência de que lemos a palavra, simplesmente usámo-la porque a percebemos.
Mas suponhamos que essa cidade é onde nasceu Svetlana Aleksievitch, Nobel da Literatura em 2015. A cidade de Ivano-Frankivs’k na Ucrânia. Lá usa-se o alfabeto cirílico, que – suponhamos também – estamos a tentar aprender: ЦЕНТР . Aí já não percebemos logo o que a palavra escrita quer dizer. Podemos reconhecer o P que corresponde ao nosso R, e o H que corresponde ao nosso N, o T que é como o nosso, e assim sucessivamente até conseguirmos reconstruir a palavra e dizer à nossa companheira “Por ali, ‘tsentr’!”
O processo de, a partir da escrita, chegar à palavra falada é designado por decodificação fonológica ou, mais abreviadamente, decodificação. Na verdade, trata-se de um conjunto de processos que vão sofrendo alterações à medida que aumenta a nossa prática e experiência de leitura.
Numa fase inicial da aprendizagem, estes processos requerem a nossa atenção e esforço. Não funcionam em piloto automático. O leitor tem de se aplicar: tem intenção de ler, presta atenção às palavras e aos seus constituintes, procura o seu conhecimento prévio para ser capaz de transformar o escrito em falado. Mesmo que seja só fala interna e não leitura em voz alta. Em termos de psicologia cognitiva, a decodificação não é um processo automático: exige recursos cognitivos, é deliberado (intencional), consciente e controlado. Seja para um leitor principiante, seja para uma criança do primeiro ano de escola ou para um adulto a aprender uma língua que não conhece.
O processo inverso à decodificação é a codificação. Em vez de ler, trata-se de escrever: converter a fala em escrita. Na forma mais elementar, é ter em mente a palavra falada que conhecemos e queremos passar para o papel ou ecrã, e ser capaz de produzir um conjunto de traços ou sinais gráficos que captam a maneira como essa palavra é evocada pela escrita. No início da aprendizagem, os processos de codificação também obrigam a que nos apliquemos na tarefa de escrever cada palavra com intencionalidade, atenção e esforço.
Quer a decodificação quer a codificação precisam de tempo nas fases iniciais da aprendizagem. Não são imediatas. Pelo contrário, podem até ser bastante lentas. Como se pode ouvir neste exemplo de uma criança que dá os primeiros passos na leitura.
2. A importância dos processos de decodificação e codificação numa fase inicial da aprendizagem
Na fase inicial da aprendizagem, os processos de decodificação fonológica e de codificação são parte intrínseca da nossa aquisição de conhecimento ou domínio da linguagem escrita. É através deles que se edificam os alicerces do nosso saber ler e saber escrever. São eles que permitem que progressivamente se construa essa fabulosa ferramenta mental que é a habilidade de ler e escrever com fluência e sem esforço. Em que já não é propriamente à leitura ou à escrita que temos de prestar atenção, mas sim ao que estas duas permitem descobrir ou criar.
3. A ciência mostra
Aprender a ler e escrever é como aprender a andar de bicicleta, a nadar crawl, a fazer uma pirueta, a jogar xadrez... Como acontece em tantos outros casos, é necessário dominar uma técnica para conseguir um objetivo com um mínimo de exigência e qualidade. Adquirir uma perícia, uma expertise.
Nas últimas décadas, têm-se avolumado os estudos sobre a aquisição de expertise. Sabemos hoje que, regra geral, esta aquisição se faz por fases. A primeira é a fase cognitiva, em que aos poucos se vai percebendo e tomando consciência deste ou daquele aspeto do que se está a aprender, e onde até ajuda verbalizar em voz alta esse conhecimento incipiente. As outras fases são a associativa e a autónoma (ver também A aquisição progressiva das habilidades de leitura e escrita).
Na aprendizagem da leitura, essa primeira fase corresponde à utilização dos processos de decodificação; na aprendizagem da escrita, à dos de codificação. Trata-se fundamentalmente de apreender o princípio alfabético: perceber a associação entre os elementos da escrita, as letras, e os elementos das palavras faladas, os fonemas. Crítico aqui é o aspeto analítico e não completamente intuitivo: é preciso dirigir a atenção não para o sentido das palavras como seria natural, mas sim para o seu som. Focar a atenção não na mensagem, mas no mensageiro. E para quê? Para estabelecer a relação entre o som (o fonema) e a letra, a unidade em que se baseia o nosso sistema de escrita alfabética. Parece coisa pouca, mas não é.
Conhecendo as letras que correspondem aos fonemas, a criança pode ela própria ensaiar a sua escrita. Por exemplo: escrever um bilhetinho sem instrução direta do adulto. Pode também aventurar-se pela leitura de palavras desconhecidas, ainda que soletrando sílaba a sílaba, letra a letra. Detém este novo poder porque começa a conhecer o código que liga a linguagem falada à escrita: as correspondências grafema/fonema.
As correspondências grafema/fonema têm duas faces: a gráfica (escrita) e a sonora (falada). Assim, na fase inicial da aprendizagem são fundamentais, por um lado, o conhecimento do alfabeto e, por outro, a capacidade de segmentar a corrente de fala das palavras (ver também Tomada de consciência dos fonemas). Relativamente ao alfabeto, estima-se que, quando a criança conhece cerca de 80% das letras – no português, perto de 20 letras –, ela começa a ser capaz de ler, sem errar, pequenas palavras reais ou até inventadas que não tinha memorizado antes. A criança não precisa de conhecer à partida aquilo que se tornou capaz de ler. Todavia, a leitura que faz é lenta, pode ter hesitações frequentes e não ser correta.
Como noutras aquisições de expertise, só com a prática continuada é que a leitura e a escrita se tornam fluentes, mais rápidas e menos dependentes da atenção e do esforço. Afinal, também nós, adultos leitores fluentes, tivemos de nos esforçar para ler o nome da cidade em que nasceu Svetlana Aleksievitch: Ivano-Frankivs’k. Por ser numa língua desconhecida, ficámos momentaneamente como uma criança na fase inicial da aprendizagem. Foi preciso decodificar a sequência de letras incomum “kivs’k” num processo sequencial, da esquerda-para-a-direita, com base no conhecimento de como cada letra representa um som e, mais precisamente, um fonema. E para isso precisámos de mais tempo e alguma atenção e esforço.
Autoria: São Luís Castro Edição: Andreia Lobo
Publicação: 22.setembro.2020
Antes de iniciar a aprendizagem da leitura e da escrita, a criança, tal como o adulto, é capaz de interpretar figuras mais ou menos complexas, ou seja, compreendê-las: “ler” como um todo. É o que acontece com o símbolo dos cinco anéis dos jogos olímpicos, ou com os logos de marcas como os quatro anéis do automóvel Audi. Sabemos interpretá-las, ou seja, “lemo-las” porque as conhecemos, porque estão representadas na nossa memória (memorizamo-las).
Mas na leitura o que é justamente especial é ela nos permitir ler o que não conhecemos à partida. Neste sentido, é um processo mais criativo do que o simples reconhecimento com base na memória. E isso porque a escrita representa a linguagem de uma maneira estruturada, com base em regras. Em vez de uma enorme sobrecarga de memória, aprender a ler e escrever é antes de mais dispor de uma ferramenta que nos torna autónomos, e que no nosso caso assenta no Princípio Alfabético. A já vasta investigação em psicologia da leitura tem demonstrado de modo inequívoco que, para dominar a ferramenta, a memorização não deve ser o esteio fundamental.
Sim, há diferenças grandes entre as crianças quanto ao ritmo de aprendizagem. Umas até podem chegar à escola já a ler. Geralmente acontece se têm irmãos mais velhos e vivem num ambiente com grande variedade de livros. Outras crianças, mesmo se provenientes de meios letrados, vão ficando para trás em comparação com os colegas. Como outras características de raiz biológica, há uma variedade – em termos mais técnicos, diz-se variabilidade – grande entre os indivíduos. Isto dificulta o trabalho do professor. Já que a taxa de progresso não é igual para todos. É por essa razão que hoje em dia os programas de computador para auxiliar as aprendizagens são adaptativos. Ou seja, a taxa de dificuldade dos exercícios ou jogos varia em função da pessoa, adapta-se a ela, de modo a combinar uma taxa de sucesso razoável com um nível de dificuldade que não exceda em muito a competência do jogador.
Não se deve fazer esse tipo de grupo de palavras para exercitar a escrita ou até a leitura. Um exercício assim não está a dar ao aluno a oportunidade de ter prática consistente numa determinada correspondência grafema-fonema. É a prática consistente – ou seja, o treino do mesmo tipo de correspondência – que permite criar ou fortalecer o estabelecimento de uma determinada representação ortográfica no sistema mente-cérebro. Se o conjunto de estímulos não for consistente, estamos simplesmente a fazer um treino de memorização arbitrária que confunde mais do que ilumina.
Suponhamos uma pianista principiante a aprender a tocar a sua primeira peça. Vai treinar a tocar as notas certas, nas teclas certas. Para praticar, não vai ‘experimentar’ a tocar nas teclas ao lado, na esperança de isso lhe permitir ter melhor controlo motor sobre as notas certas.
Do mesmo modo, para propiciar experiências de leitura e escrita que conduzam ao estabelecimento de procedimentos automatizados, é fundamental a prática maciça de conjuntos coerentes. Por exemplo, num primeiro momento, exercitar um conjunto variado de palavras partilhando uma mesma grafia. Por exemplo: “girafa, geleia, gigante, gelado”, etc. Palavras iniciadas por “ge-” ou “gi-”. E só depois chamar a atenção explícita para a grafia rara “jeito”. O mesmo para o conjunto de palavras começadas por “to-” lido como /tu/, sem misturar com a grafia “tu-”, decorrente da aplicação direta do princípio alfabético (<t> + <u> é sempre igual a /tu/). A escolha de conjuntos de palavras consistentes pode ser feita facilmente recorrendo a bases de dados lexicais como, por exemplo, o PORLEX (ver mais informações aqui).
Dehaene, S. (2012). Os neurónios da leitura. Como a ciência explica a nossa capacidade de ler. Porto Alegre: Editora Penso. (Tradução para o português do Brasil. Edição original de 2009)
Morais, J. (2013). Alfabetizar em democracia. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Moutinho, L. (2000). Uma introdução ao estudo da fonética e fonologia do português. Lisboa: Plátano Edições Técnicas.
O princípio alfabético é o mecanismo de funcionamento dos sistemas de escrita alfabética. De acordo com este princípio, cada fonema é representado por um grafema. Compreender o funcionamento do princípio alfabético é a chave da aprendizagem da leitura e da escrita. O princípio alfabético é a base da decodificação/codificação, assim como a da aprendizagem do código ortográfico.
Tal como ao aprender a andar de bicicleta nos tornamos capazes de ter equilíbrio sem pensar (automaticamente), também ao aprender a ler e a escrever ganhamos a capacidade de alguns processos funcionarem em piloto automático. É a aquisição de expertise, que nos torna mais autónomos e flexíveis.