Desenvolver A Ciência Mostra

Flexão verbal e nominal

Há palavras invariáveis, como as preposições, as conjunções ou os advérbios, que têm uma única forma, e há palavras variáveis, como os verbos, os substantivos ou os adjetivos, que têm diversas formas. Muitas destas formas de variação são geradas por processos de flexão, que são obrigatórios e sistemáticos. A consciência de que as palavras variam é adquirida precocemente. No entanto, a aquisição de formas flexionadas que ocorrem quase só em registo escrito (cf. cantariam, soubesse) é tardia, podendo o contacto das crianças com essas formas coincidir ou até ser posterior à aprendizagem da leitura e da escrita. O conhecimento da flexão é importante para a compreensão e boa-formação dos enunciados frásicos, tanto na oralidade, como na leitura e escrita.

1. Flexão verbal e nominal

A variação morfológica das palavras inclui o contraste temático e a flexão. A variação temática não é obrigatória (cf. aluno/aluna vs. estudante; gerar/gerir vs. abrir). Pelo contrário, a flexão é obrigatória e é realizada de forma sistemática (cf. aluno / alunos; cantei / cantavam), dependendo da categoria das palavras: a flexão verbal é diferente da flexão dos substantivos ou dos adjetivos.

No português, a flexão verbal está subordinada à conjugação do verbo, que é foneticamente identificável a partir da realização da vogal temática, que ocorre entre o radical e os sufixos de flexão:

  • no infinitivo, as vogais temáticas são -a (cf. cant-a-r); -e (cf. beb-e-r); -i (cf. sent-i-r);
  • no particípio passado são -a (cf. cant-a-do); -(cf. beb-i-do); -i (cf. sent-i-do);
  • no presente do indicativo são -a (cf. cant-a); -e (cf. beb-e); -e (cf. sent-e).

Alguns sufixos de flexão verbal têm uma realização na primeira conjugação e outra nas outras duas (cf. canta-va vs. bebi-a, fugi-a).

A variação temática verbal também tem consequências para a derivação, dado que há sufixos que se associam:

  • ao tema infinitivo (cf. apresenta-dor, empreende-dor, polui-dor);
  • ao tema do particípio (cf. declara-ção, perdi-ção, persegui-ção);
  • ao tema do presente (cf. concordâ–ncia, dependê-ncia, aderê–ncia).


A flexão dos verbos da 1ª conjugação é geralmente regular, enquanto a maior parte dos verbos da 2.ª e da 3.ª conjugação tem flexão irregular, no sentido em que a flexão regular não gera as formas aceites pela norma. A primeira conjugação é também a única que recebe novos verbos.

Nos paradigmas regulares, a flexão verbal inclui formas pessoais e formas impessoais. As primeiras flexionam em tempo-modo-aspeto e pessoa-número. Essa flexão pode ser realizada por:

  • dois sufixos diferentes (cf. cantá-sse-mos, bebê-sse-mos, sentí-sse-mos);
  • um único sufixo, que combina os dois valores da flexão, como sucede na primeira pessoa do singular do presente do indicativo (cf. cant-o, beb-o, sint-o) ou no pretérito perfeito (cf. canta-ste, bebe-ste, senti-ste).

O infinitivo impessoal (cf. canta-r, bebe-r, senti-r), o gerúndio (cf. canta-ndo, bebe-ndo, senti-ndo) e o particípio passado (canta-do, bebi-do, senti-do) são formas impessoais, porque flexionam apenas em tempo-modo-aspeto.

Os substantivos e adjetivos têm uma flexão mais simples, que é número. O contraste entre singular e plural é realizado pela oposição entre o sufixo -s (cf. livro-s, antigo-s), para o plural, e a ausência de qualquer sufixo, para o singular (cf. livro, antigo). Nas palavras que terminam em consoante lateral (cf. anel), vibrante (cf. colar) ou fricativa (cf. país, rapaz), a formação do plural (cf. anéis, colares, países, rapazes) desencadeia operações fonológicas que sugerem que a formação do plural é distinta nestes casos, mas a diferença é fonológica e não morfológica.


2. A importância da morfologia flexional para o desenvolvimento linguístico e para a aprendizagem da leitura

A aquisição de algumas formas flexionadas ocorre numa fase precoce do processo de desenvolvimento linguístico. É o que se verifica com a oposição entre o singular e o plural dos substantivos (cf. menino/meninos), ou com os contrastes temporais em frases principais, como o domínio do presente e do pretérito perfeito do indicativo (cf. brinca/brincou), ou contrastes pessoais, como o que se estabelece entre a 3.ª e a 1.ª pessoas do singular (cf. brincou/brinquei).

Um indício da aquisição dos processos de flexão vem da generalização dos paradigmas regulares a palavras irregulares. Formas como *cãos, *fazi ou *ouvo, que são produzidas sem nunca terem sido ouvidas pelas crianças, mostram que estes processos flexionais estão adquiridos e são sistematicamente utilizados. Estas formações ocorrem numa etapa de regularização paradigmática, na produção infantil, a que se seguirá a interiorização das formas irregulares (cf. cães, fiz, ouço), com ou sem intervenção explícita dos interlocutores, dado que a exposição aos estímulos linguísticos não valida a sobregeneralização.

Quanto à flexão irregular que afeta palavras pouco frequentes, como, por exemplo, o verbo entreter ou o substantivo cidadão, ela tem uma realização espontânea menos garantida. Depende crucialmente da frequência com que a forma irregular ocorre na interação verbal (cf. *entretia vs. entretinha; *cidadões vs. cidadãos). Nestes casos, a interação verbal formal e o domínio da leitura podem ajudar a consolidar a automatização do uso da flexão irregular e essa maturação do sistema linguístico é importante para a qualidade da produção escrita.

A estabilização de formas irregulares supletivas que ocorre em verbos muito frequentes, como os monossilábicos (cf. sou/és/fui ou ir/vou) processa-se sem intervenção da flexão. Essas formas são aprendidas como palavras diferentes.

A exposição a dados linguísticos mais diversificados, por exemplo através da escuta de histórias ou de filmes e, sobretudo, ao longo do processo de escolarização, traz às crianças um acesso a formas flexionadas menos frequentes na interação verbal próxima e informal. Essas formas ocorrem principalmente em frases subordinadas (cf. se escrevesses uma carta ao pai natal, o que lhe pedirias ?). A aprendizagem dessas formas depende da familiarização com essas construções e ambas estão relacionadas com a frequência da exposição aos estímulos. Consequentemente, essa aprendizagem também está intimamente relacionada com a capacidade de leitura e contacto com textos escritos.

O conhecimento da flexão é também muito importante para a boa-formação dos enunciados frásicos, que são particularmente importantes no processo de leitura, dado que a escrita potencia a ocorrência de dependências distantes:

a artista convidada está preparada para entrar em cena e vai agora ser entrevistada

preparada para entrar em cena, a artista convidada vai agora ser entrevistada


A consciência morfológica pode ainda contribuir para resolver problemas de escrita suscitados por realizações fonéticas semelhantes que podem ou não ter registos gráficos distintos. No caso do ditongo final [ɐ̃w̃], por exemplo, o registo gráfico difere apenas no que diz respeito a formas verbais e, mais especificamente, ao contraste entre o pretérito perfeito e o futuro simples, na 3.ª pessoa do plural. Nos substantivos, a grafia é mais estável:

cantaram [kɐ̃’tarɐ̃w̃] canção [kɐ̃’sɐ̃w̃]

cantarão [kɐ̃tɐ’rɐ̃w̃] órgão [‘ɔrgɐ̃w̃]


3. A ciência mostra

Em 1958, a psicolinguista Jean Berko desenvolveu um teste para avaliar o conhecimento da morfologia do inglês, em crianças com idades entre os 4 e os 7 anos. O Wug test visava medir o conhecimento da flexão nominal e verbal, e algumas outras estruturas, com base em palavras inventadas (as chamadas não-palavras) para garantir que as crianças nunca tivessem ouvido as formas alvo. Os resultados mostraram que as crianças conheciam e usavam, como esperado, os processos de flexão do inglês. Os processos derivacionais não foram tão bem-sucedidos. Por outro lado, os resultados dos dois grupos etários (pré-escolar e 1.º ano) revelaram que as crianças mais velhas produziram melhores resultados, o que permitiu sustentar a hipótese de que o conhecimento do sistema morfológico nessas idades está a ser consolidado. Os trabalhos sobre a aquisição da flexão no português são ainda escassos, mas é possível encontrar estudos exploratórios sobre aquisição da flexão nominal e verbal, ou de ambas.

É interessante notar que a investigação em linguística tem vindo a mostrar que os paradigmas de flexão apresentados nas gramáticas escolares, sobretudo no que diz respeito à flexão verbal, incluem formas que têm diferentes pesos no conhecimento e uso da língua. Por exemplo, a primeira e a segunda pessoas são formas que ocorrem no discurso interpessoal e a sua ocorrência depende das formas de tratamento em uso, havendo contrastes, por exemplo, entre o português europeu (tratamento por tu) e o português brasileiro (tratamento por você). Sabe-se também que a forma de segunda pessoa do plural está em desuso - a forma de tratamento vós foi substituída por vocês, sendo este pronome flexionado como o da terceira pessoa do plural (cf. vocês/eles cantam). O mesmo se verifica com as formas do pretérito-mais-que-perfeito (cf. cantara), ou até com o futuro simples (cantará) ou o condicional (cf. cantaria), que revelam uma frequência de uso muito baixa. Ainda que não tenha sido feito trabalho experimental sobre estas questões, deve antecipar-se que a consciência morfológica das formas em desuso não ocorrerá espontaneamente e que a explicitação esbarrará na falta de validação por dados empíricos.

A correlação entre a investigação sobre processamento da flexão e a aquisição e desenvolvimento da leitura e da escrita também tem sido objeto de algumas pesquisas.

A correlação entre a investigação sobre processamento da flexão e a aquisição e desenvolvimento da leitura e da escrita também tem sido objeto de algumas pesquisas.


Autoria: Alina Villalva

Publicação: 14.janeiro.2022

Recomendações

Perguntas Frequentes

Os nomes e adjetivos não flexionam em género?

Não. Os contrastes de género, que ocorrem em formas como gato / gata ou professor / professora, não são gerados por flexão, porque não são obrigatórios nem sistemáticos. Nos substantivos inanimados (como casa ou carro) não pode haver contrastes de género. Nos substantivos animados pode haver, como nos casos já referidos de gato/gata; professor/professora, ou não, como em testemunha, que é sempre um substantivo feminino, ou em indivíduo, que é sempre masculino. A variação de género pode ser temática, quando o contraste é dado pelo índice temático (e.g., alun(o/a); professor(ø/a)), ou derivacional (cf. conde / condessa) ou resultante do processo de composição (cf. águia-macho / águia-fêmea). Em alguns casos, o contraste de género só é realizado na frase (cf. o atleta / a atleta).

Palavras invariáveis, como as preposições (e.g. de), podem ocorrer em contrações variáveis (cf. de, da, dos, das). Nestes casos, pode considerar-se que as preposições também são variáveis?

Não. As contrações são o resultado de processos fonéticos, como a assimilação, que intervêm nas fronteiras entre palavras. De um modo geral, o resultado não tem consequências na grafia (cf. bola azul [ˈbɔlaˈzuɫ], as chaves [ɐˈʃavɨʃ], dois rapazes [ˈdojʀɐˈpazɨʃ]). O reconhecimento ortográfico ocorre sobretudo quando a sequência de palavras inclui uma preposição monossilábica e um determinante (cf. à, num) ou um demonstrativo (cf. deste, naquele). Do ponto de vista morfológico, estas palavras assemelham-se a palavras compostas e o que varia é o constituinte da direita, não a preposição.

Recursos

LEITURAS SUGERIDAS

Appel, K. (2020). Morphological Awareness: The Building Blocks of Language. Medbridge. Https://www.medbridgeeducation.com/blog/2020/01/morphological-awareness-the-building-blocks-of-language/.

Berko, J. (1958). The child's learning of English morphology. Word, 14(2-3), 150-177. Https://doi.org/10.1080/00437956.1958.11659661.

Villalva, A. (2008). Morfologia do Português. Universidade Aberta.

Villalva, A. & Silvestre, J. P. (2015). Introdução ao Estudo do Léxico. Descrição e Análise do Léxico do Português. Editora Vozes.

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