Desenvolver A Ciência Mostra

Morfologia e consciência morfológica

A morfologia estuda palavras. As palavras são estruturas preenchidas por unidades lexicais menores (radicais e afixos) que se organizam e relacionam entre si de várias maneiras. Com base na descrição e análise de palavras de que há registo, a morfologia estuda também os processos de formação de novas palavras. O conhecimento das estruturas e dos processos morfológicos faz parte integrante do processo geral de conhecimento linguístico. A consciência morfológica, que vem da explicitação desse conhecimento, contribui para o sucesso da aprendizagem da leitura e da escrita.

1. Morfologia e consciência morfológica

A análise das estruturas morfológicas do português permite identificar categorias de constituintes e tipos de estruturas. Todas as palavras partilham as propriedades que constituem a chamada estrutura básica. Esta estrutura está centrada no radical (cf. cant-, beb-, fug-), que é especificado por um sufixo (a vogal temática, VT, nos verbos) para formar uma estrutura intermédia, que é o tema (cf. canta-, bebe-, fugi-). Por último, o tema é especificado pela flexão para formar uma palavra: nos exemplos seguintes, trata-se da forma do infinitivo (respetivamente cantar, beber e fugir).



Os exemplos seguintes mostram a estrutura básica de adjetivos, advérbios e substantivos, cujo radical é especificado por um índice temático (IT), que é diferente da vogal temática dos verbos:



A estrutura morfológica de palavras cujo radical é formado por uma única unidade lexical, como as anteriores, fica totalmente descrita pela estrutura básica. Estas são as palavras simples.

As estruturas cujo radical é formado por duas ou mais unidades são palavras complexas, que podem ser formadas por afixação ou por composição


A afixação junta um afixo a uma base (radical, tema ou palavra) e inclui dois subtipos: a derivação e a modificação:

  • na derivação, o sufixo é responsável pelas propriedades gramaticais dos derivados (e.g., de livr-ari(a));
  • na modificação, o afixo (prefixo ou sufixo) é apenas um modificador semântico da base (e.g., livr-inh(o))

A composição junta duas ou mais bases e também inclui dois subtipos:

  • a composição morfológica junta radicais (e.g., audiolivro);
  • a composição morfossintática junta palavras (e.g., livro-jogo).


Como os processos de formação de palavras complexas são recursivos (v. recursividade), ou seja, como as bases podem ser formas complexas, estas palavras podem ter diferentes graus de complexidade. É o que se verifica com a seguinte sequência de palavras, derivadas do adjetivo real:

real  > realiza(r)
realiza(r)  > realizável
realizável  > irrealizável


As palavras complexas são geradas num dado momento da história da língua e passam a integrar o seu acervo lexical. Por esta razão, muitas palavras complexas sofrem processos de mudança formal ou de mudança semântica:

- mudança formal: e.g., bondad+oso -> bondadoso -> bondoso
- mudança semântica: e.g., engarrafar ‘colocar em garrafas’
                                            engarrafar ‘congestionar’ (relacionado sobretudo com o trânsito)


Os processos de mudança transformam as palavras complexas em palavras lexicalizadas (v. lexicalização), ou seja, em palavras cuja estrutura não é composicional (v. composicionalidade) porque respeita as propriedades dos constituintes. Só as palavras complexas que não foram afetadas por processos de mudança podem servir de modelo à formação de novas palavras. Por exemplo, quando é preciso formar um verbo que refira o processo de plantação de eucaliptos, o recurso utilizado pode ser a sufixação em -iz(ar) (cf. eucalipt  > eucaliptizar), porque este sufixo de verbalização está disponível no português contemporâneo (cf. computador -> computadorizar), apesar de haver verbos em -iz(ar) que estão lexicalizados (cf. *informat  > informatizar - este verbo não foi formado no português, foi introduzido no léxico do português por empréstimo do francês).


2. A importância da morfologia para o desenvolvimento linguístico e para a aprendizagem da leitura

A aquisição dos processos morfológicos é ordenada no tempo. Primeiro são aprendidas palavras e só mais tarde ocorre a capacidade de relacionar palavras diferentes, mas que pertencem a um mesmo paradigma, ou por partilha do radical (e.g., gato, gatinho, gatinhar) ou por partilha de um afixo (e.g., gatinho, bolinho, amiguinho, etc.). Essa capacidade permite chegar à identificação das unidades que constituem as estruturas morfológicas (radicais e afixos) e dos processos de formação dessas estruturas (afixação e composição).

A aquisição da estrutura morfológica básica, que inclui a formação do tema e o domínio dos processos de flexão, precede a aquisição de estruturas complexas, que inclui a familiarização com processos de derivação e modificação. O desenvolvimento do conhecimento morfológico depende, pois, e em boa medida, da qualidade e diversidade dos dados linguísticos a que as crianças são expostas.


A dimensão dos paradigmas definidos pela partilha de um radical ou de um afixo, pode ajudar as crianças a compreender cada uma dessas palavras e os processos morfológicos que as geraram. Por exemplo, a partilha de um radical (cf. infografia famílias de radicais) ajudará a compreender cada uma das palavras que o contém, sobretudo quando os falantes as encontram pela primeira vez).


Também a identificação dos afixos (cf. infografia famílias de afixos) tem uma função de apoio à compreensão das palavras complexas e, eventualmente, à formação de novas palavras. Surgindo um novo substantivo em -ção, como covidização, a presença do sufixo permite deduzir que se trata do nome de um processo (cf. covidizar), que, por sua vez é um verbo derivado do substantivo covid, por intermédio do sufixo -iz(ar).


Alguns estudos, como o de Guimarães, Paula, Mota e Barbosa (2014), defendem que existe uma correlação positiva entre a capacidade de identificar os constituintes das palavras e os processos de formação de palavras (a consciência morfológica) e a proficiência na leitura das palavras e acuidade ortográfica. Essa correlação pode ser estabelecida porque o conhecimento dos constituintes morfológicos permite fazer generalizações baseadas na relação entre uma sequência de grafemas e um constituinte morfológico que possui (i) uma informação fonológica e (ii) um valor semântico ou gramatical. Por exemplo, o sufixo -ês, que ocorre em palavras como francês, tem uma realização fonética idêntica à de -ez, que surge em palavras como rapidez, mas o primeiro forma adjetivos relacionais e o segundo forma substantivos de qualidade. Essa distinção é fácil de estabelecer em contexto (cf. infografia consciência morfológica e ortografia), o que pode ajudar a resolver uma dificuldade na escrita.


3. A ciência mostra

A investigação sobre processamento morfológico não está ainda muito desenvolvida, sobretudo no que diz respeito à análise de dados do português. Vários trabalhos experimentais com crianças em idade escolar (cf. Mota, 2009) demonstram a existência de relações entre constituintes das palavras, radicais e afixos, e significados (os dados considerados incluem pares de palavras como fazer - desfazer; ligar - religar; capaz - incapaz) e defendem que a consciência morfológica pode facilitar o sucesso na aprendizagem e desenvolvimento da leitura e da escrita. No entanto, estes autores também referem que a atribuição dos efeitos encontrados ao conhecimento morfológico e não ao conhecimento semântico é difícil de comprovar porque os dados linguísticos em que se basearam foram insuficientemente controlados. Ainda que os resultados deste trabalho experimental não permitam construir hipóteses sólidas, eles mostram que é necessário prosseguir com este tipo de investigação.

O trabalho de Pinto (2017) controlou a qualidade do corpus de análise ao testar dados morfológicos que contrastam estruturas composicionais (cf. venen-oso) com estruturas lexicalizadas por alomorfia do sufixo (cf. lux-uoso) e estruturas lexicalizadas por alomorfia da base (cf. medr-oso), embora todas sejam adjetivos denominais derivados pelo mesmo sufixo. Este trabalho baseia-se num conjunto de experiências que usaram duas técnicas experimentais (v. teste de decisão lexical e priming), a partir da leitura de vários tipos de palavras complexas, por um grupo de crianças do 4.º ano do ensino básico e um grupo de jovens adultos, estudantes universitários. Algumas das conclusões apresentadas indicam que:

  • os adultos reconhecem mais palavras complexas do que as crianças;
  • o tempo de leitura de palavras complexas, por crianças, corresponde aproximadamente ao dobro do tempo de leitura das mesmas palavras por adultos;
  • a leitura de palavras é sensível à sua estrutura morfológica, dado que palavras com estruturas morfológicas distintas produzem, coerentemente, tempos de leitura distintos, tanto com crianças como com adultos.

Castles, Rastle & Nation (2018) afirmam que a aquisição do conhecimento da relação entre constituintes morfológicos e valores semânticos permite às crianças dar um salto qualitativo no desenvolvimento dos processos da leitura e da escrita, porque permite substituir o estágio em que a relação se processa entre grafemas e sons, um a um, por uma fase em que menos relações são requeridas e elas passam a ocorrer entre contínuos sonoros e significados ou informações gramaticais.

As estratégias pedagógicas propostas por Nunes & Bryant (2006), por exemplo, passam pelo treino explícito da segmentação morfológica. A exposição a um maior volume de estímulos, que ocorre durante a percurso escolar, também pode ter um efeito facilitador nos processos de aquisição e desenvolvimento da leitura e da escrita.


Autoria: Alina Villalva

Publicação: 13.dezembro.2021

Recomendações

Perguntas Frequentes

As crianças devem ser corrigidas quando flexionam uma palavra de forma errada (e.g. capitães) ou quando usam uma palavra derivada não-atestada (e.g. misturação)?

Podem ser corrigidas, mas o fator determinante é a exposição aos dados da língua. As crianças adquirem a variedade linguística que, à sua volta, é dominante.

As palavras que as crianças ouvem e as palavras que leem são diferentes?

Em parte, não e, em parte, sim. De um modo geral, o registo oral é menos formal do que o registo escrito. Essa diferença é grandemente responsável pela exposição a subléxicos distintos. Mas há uma outra diferença que é importante considerar - o registo escrito abre caminho ao contacto com um léxico muito mais diversificado do que o registo oral que depende apenas das relações pessoais e próximas.

Os constituintes morfológicos são morfemas?

O conceito de morfema recebeu muitas definições desde a sua formação, no final do século 19, pelo linguista Baudouin de Courtenay. A definição que agora é mais ou menos consensual é a de que os morfemas são as menores unidades portadoras de significado. Alguns constituintes morfológicos são, de facto, morfemas (é o que se verifica com os radicais simples). Outros constituintes morfológicos não são compatíveis com a definição de morfema, ou porque não são unidades portadoras de significado (como os sufixos temáticos), ou porque incluem mais do que um morfema, como os radicais complexos ou o tema.

Recursos

LEITURAS SUGERIDAS

Castles, A., Rastle, K., & Nation, K. (2018). Ending the reading wars: Reading acquisition from novice to expert. Psychological Science in the Public Interest, 19, 5–51. https://doi.org/10.1177/1529100618772271

Guimarães, S. R. K., Paula, F. V. de; Mota, M. M. P. E. da, & Barbosa, V. do R, (2014). Consciência morfológica: que papel exerce no desempenho ortográfico e na compreensão de leitura? Psicologia USP, 25(2). 201-212. https://doi.org/10.1590/0103-6564A20133713

Mota, M. (2009). O papel da consciência morfológica para a alfabetização em leitura. Psicologia em Estudo, 14(1), 159-166. [http://www.scielo.br/pdf/pe/v14n1/a19v14n1.pdf]

Nunes, T., & Bryant, P. (2006). Improving literacy by teaching morphemes. Routledge.

Pinto, C. (2017). O papel da estrutura morfológica nos processos de leitura de palavras. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa: Dissertação de Doutoramento. hdl.handle.net/10451/32145

Villalva, A. (2008). Morfologia do Português. Universidade Aberta.

Villalva, A. & Silvestre, J. P. (2015). Introdução ao Estudo do Léxico. Descrição e Análise do Léxico do Português. Editora Vozes.