A consciência de que as palavras são constituídas por morfemas é um elemento importante na consolidação das competências de leitura e escrita. A morfologia une e reforça o conhecimento das palavras nas suas faces semântica, ortográfica e fonológica. Este texto discute como o desenvolvimento do conhecimento morfológico nos alunos do 1.º ciclo pode ajudar a desenvolver melhores leitores e escritores.
1. Consciência morfológica
A consciência morfológica refere-se à capacidade de a criança refletir, analisar e manipular a estrutura morfémica das palavras. Os morfemas são as unidades mínimas com significado numa língua. Esse significado pode ser lexical ou de conteúdo como em casa, mesa, balão; ou gramatical, funcional como em ele, a, e.
Uma palavra pode ser constituída por um ou mais morfemas. Por exemplo: a palavra feliz tem um morfema, a palavra infeliz tem dois morfemas e a palavra infelizmente tem três morfemas. O último exemplo permite também notar a existência de morfemas livres, aqueles que podem surgir como vocábulos isolados (feliz); e de morfemas presos, aqueles que nunca aparecem sozinhos (in- e -mente no exemplo anterior).
A consciência morfológica é a capacidade de descobrir e manipular as unidades de significado numa língua. Ela é um desenvolvimento inerente à aprendizagem de uma língua falada que decorre sobretudo de modo implícito. O caráter obrigatório do desenvolvimento destas intuições foi bem demonstrado pelas experiências clássicas de Jean Berko que, nos anos 50 do século passado, mostraram que crianças de quatro anos resolviam com sucesso situações como esta:
O adulto apresenta à criança a figura de um bicharoco e diz-lhe que aquilo é um “wug”. Wug é uma palavra inventada em inglês que seguramente a criança nunca ouviu antes. A seguir, o adulto mostra-lhe um par de bicharocos e pergunta-lhe o que são? Se a criança conhecer a regra morfológica para formar plurais vai seguramente responder “wugs”. O facto de ela ser capaz de aplicar esta regra a palavras que não conhece mostra bem o carácter generativo da morfologia.
2. A importância do conhecimento morfológico para a aprendizagem da leitura e da escrita
A consciência morfológica é muito importante para a leitura e a escrita porque uma vez adquirida a regra morfológica ela pode ser usada constituindo-se como um fator acrescido de regularidade e previsibilidade. A criança que sabe que o plural é frequentemente marcado em português pelo <s> e pelo som /ʃ/ no final da palavra, aprende simultaneamente o significado, a ortografia e a fonologia de uma parte considerável dos plurais em português. O conhecimento morfológico parece, portanto, atuar como um agente que unifica, reforça o conhecimento lexical nas suas dimensões semântica, ortográfica e fonológica.
Conhecer a estrutura morfológica também possibilita que a criança possa aprender, intuir o significado de palavras que nunca leu ou escreveu antes. Por exemplo: uma criança que conhece as profissões bombeiro, engenheiro, cabeleireiro, pode ler, escrever e intuir o significado da palavra barbeiro que, imaginemos, ela encontra pela primeira vez no conto tradicional “O macaco de rabo cortado”.
A grande vantagem do conhecimento morfológico é que é escalável. Isto é, enquanto a fonologia, a ortografia e o significado de muitas palavras têm de ser aprendidas uma a uma, o conhecimento morfológico pode ser aplicado a toda a família de palavras que partilham regras morfológicas, tornando assim a aprendizagem de novas palavras bastante eficiente.
3. O que a ciência nos mostra
Há uma correlação forte entre a consciência morfológica e o bom desempenho na leitura, na ortografia e na compreensão leitora, que se torna particularmente evidente no final do 1.º ciclo. Nas ortografias alfabéticas, a consciência fonológica é um bom preditor do sucesso no início da aprendizagem da leitura. Já a consciência morfológica tende a ser melhor preditor do sucesso na literacia a partir do final do 1.º ciclo. Crianças que têm boa consciência morfológica tendem a ler melhor, a cometer menos erros ortográficos e a compreender melhor os textos que leem.
Uma vez estabelecida a decodificação, que tende a operar com unidades mínimas sem significado, o conhecimento morfológico facilita que a criança passe a operar com unidades linguísticas maiores e que estabeleça relações generativas entre significado, ortografia e fonologia. Por exemplo: a partir do conhecimento morfológico a criança pode aprender o significado de palavras que desconhece e que inevitavelmente encontra nas (desejavelmente, muitas) leituras que faz.
A investigação tem demonstrado que o ensino explícito da morfologia tem efeitos muito positivos em vários aspetos do desenvolvimento da literacia. Melhora a capacidade de as crianças analisarem a estrutura morfológica das palavras, o vocabulário, a leitura de palavras e a sua escrita ortograficamente correta.
Autoria: Rui Alves Edição: Andreia Lobo
Publicação: 07.dezembro.2020
Há investigação consolidada que tem dado conta das vantagens do ensino explícito da morfologia nos anos finais do 1.º ciclo, dado que a fluência no mecanismo de decodificação parece então facilitar que, ao lerem melhor as palavras, as crianças possam focar-se nos aspetos morfológicos. No entanto, alguns estudos com crianças mais novas, inclusive pré-escolares, têm documentado benefícios da promoção mais precoce da consciência morfológica através da promoção do vocabulário e do desenvolvimento da linguagem em contextos de oralidade ricos.
Claravall, E. B. (2016). Integrating morphological knowledge in literacy instruction: Framework and principles to guide special education teachers. Teaching Excepcional Children, 48, 195-203.
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Nunes, T., Bryant, P., Pretzlik, U., & Hurry, J. (Eds.). (2006). Improving literacy by teaching morphemes. London: Routledge.
A aprendizagem da leitura/escrita implica a aprendizagem de um sistema de signos gráficos que representam a fala e o desenvolvimento de conhecimentos e habilidades que possibilitem a compreensão do que se lê e a capacidade de expressão através da escrita. Por isso, o sucesso nesta aprendizagem é influenciado pela condição em que cada criança se encontra quando inicia a escolaridade, em particular pelo seu desenvolvimento linguístico e pelo contacto prévio que teve com a escrita.
A caligrafia, a escrita à mão, é uma competência importante e definidora da pessoa letrada. Imagine-se uma sociedade na qual nenhum cidadão sabe assinar o seu nome num pedaço de papel! Este texto caracteriza a caligrafia do ponto de vista cognitivo, dá conta da importância da escrita à mão para o desenvolvimento da literacia e discute como o desempenho das crianças na caligrafia pode ser melhorado e esse progresso avaliado.