A caligrafia, a escrita à mão, é uma competência importante e definidora da pessoa letrada. Imagine-se uma sociedade na qual nenhum cidadão sabe assinar o seu nome num pedaço de papel! Este texto caracteriza a caligrafia do ponto de vista cognitivo, dá conta da importância da escrita à mão para o desenvolvimento da literacia e discute como o desempenho das crianças na caligrafia pode ser melhorado e esse progresso avaliado.
1. Dominar a caligrafia, a escrita à mão
Dominar a escrita à mão significa ter aprendido e treinado, ao ponto da automatização, os gestos manuais necessários para que do manuseio de uma caneta ou lápis resulte um traçado gráfico com valor linguístico. Formas precoces de escrita à mão podem ser encontradas nas primeiras garatujas das crianças. E nas suas tentativas para se apropriarem do conjunto de sinais gráficos convencionais, que a ortografia usa para transcrever a fala.
É comum identificar caligrafia com o desenho das letras e reduzi-la a uma habilidade meramente motora. Contudo, caligrafar não é desenhar. Na caligrafia a intenção é eminentemente linguística: pretende-se deixar marcas no papel que possam ser decodificadas como linguagem falada. Caligrafar também não é um ato meramente motor. Para se tornar eficiente é crucial que o gesto motor seja integrado com o conhecimento ortográfico. O controlo motor e o conhecimento ortográfico são habilidades independentes e potenciais fontes de dificuldade específicas. Escrever à mão implica a integração do gesto motor com o conhecimento das convenções ortográficas. Por exemplo: o conhecimento das letras e de como elas são combinadas para escrever corretamente as palavras de uma língua. O sucesso desta integração ortográfico-motora é habitualmente avaliado em dois parâmetros importantes: a legibilidade da escrita e a rapidez com que a criança escreve.
2. A importância do domínio da escrita à mão para o desenvolvimento da escrita
A função comunicacional da escrita bastaria para atestar da importância da legibilidade. Se um leitor não for capaz de reconhecer as letras caligrafadas, a mensagem que estas transportam está irremediavelmente perdida. Além disso, muitos leitores tendem também a formular juízos e a inferir qualidades do autor a partir da caligrafia. Acresce que, com o uso, a caligrafia tende a assumir-se como forma de expressão da individualidade. Basta lembrar o valor ainda hoje atribuído à assinatura pessoal. Já a rapidez de escrita tem consequências cruciais para a eficiência com que a criança consegue registar os seus pensamentos no papel e para a orquestração dos processos cognitivos durante a escrita de um texto.
O aspeto mais crítico na aprendizagem da caligrafia é a garantia de que a criança possa treinar a escrita à mão o tempo suficiente até que esta se torne automática. São bons indicadores de automatização a rapidez, o “não ter de pensar como escrever as palavras”, e o ser capaz de transcrever o discurso de alguém mantendo a compreensão.
Dominar a escrita à mão é uma habilidade básica que tem repercussões importantes para o desenvolvimento da competência na escrita, em particular na escrita de textos. Observando o esforço atencional que uma criança de seis anos coloca na execução da caligrafia das palavras, compreendemos o desafio que a escrita coloca inicialmente à criança. Um esforço tão elevado que torna difícil a execução simultânea de outros processos cognitivos importantes na produção textual. Contudo, à medida que as exigências atencionais da escrita à mão diminuem, é possível que processos como o planeamento e a revisão possam começar a operar em paralelo com a caligrafia.
No contexto adequado, com ensino de qualidade e o treino necessário, a criança progride no domínio da caligrafia. Sente-se gratificada por esse progresso. Desenvolve um sentido de autoeficácia inicial na escrita que lhe vai permitir persistir e lidar com os sucessivos desafios em que a escrita é pródiga. Contudo, o reverso também pode ocorrer. Crianças para as quais a caligrafia se torna um obstáculo quase intransponível tendem a responder com aborrecimento e evitamento das tarefas de escrita. Sem prática, a competência na caligrafia não se desenvolve e pode então instalar-se uma espiral negativa que pode estagnar todo o desenvolvimento da escrita.
3. A ciência mostra
Vários estudos mostraram que, no início da aprendizagem da leitura, o treino da escrita à mão tem um impacto positivo sobre o progresso na leitura. Crianças de quatro anos que treinaram a caligrafia das letras, por comparação a crianças que ouviram ou teclaram as letras, tiveram ganhos no reconhecimento das letras. Ganhos que são um passo importante na facilitação da aprendizagem da leitura. Os benefícios da escrita à mão parecem acontecer porque a variabilidade introduzida pela escrita das letras possibilita a melhor conexão entre sistemas cerebrais motores e visuais e essa experiência mais rica de aprendizagem favorece o reconhecimento das letras.
Os professores devem estar cientes do viés negativo que uma caligrafia pobre e com erros ortográficos induz na avaliação da qualidade de textos. Textos com caligrafia irregular e erros ortográficos são tipicamente avaliados como sendo de menor qualidade do que versões mais legíveis e sem erros ortográficos desses textos. É, por isso, importante que os professores não discriminem negativamente as crianças com caligrafias pobres.
Inicialmente a caligrafia é uma atividade custosa que preenche toda a capacidade atencional da criança. Com a prática, a caligrafia vai-se automatizando. Isso possibilita que os recursos atencionais que antes lhe eram dedicados fiquem livres e possam ser usados por outros processos cognitivos de nível mais elevado, que beneficiarão a qualidade dos textos.
Há uma correlação bem estabelecida entre o domínio da caligrafia e a qualidade textual. Crianças com melhor competência na escrita à mão, isto é, que escrevem mais rápido e legivelmente, escrevem melhores textos. No início da aprendizagem da escrita, o treino da caligrafia tem um impacto direto na melhoria da qualidade dos textos. Treinar a caligrafia torna a escrita mais eficiente: as crianças conseguem escrever mais em menos tempo. Ao deixar de se preocupar unicamente com o controlo da caligrafia, a criança pode prestar atenção a outros aspetos, como a escolha de palavras ou o planeamento do texto, que por sua vez terão um impacto na qualidade dos textos.
Autoria: Rui Alves Edição: Andreia Lobo
Publicação: 22.setembro.2020
Não. A caligrafia não é equivalente ao desenho. Na caligrafia a intenção do gesto manual é representar a ortografia das palavras da língua usando um conjunto de sinais gráficos convencionais. Isto significa que, do ponto de vista cognitivo, a caligrafia resulta da integração entre um gesto motor e uma representação ortográfica (ou de modo mais simples, o conhecimento da forma escrita da palavra).
Não, é importante que a criança possa desenvolver uma caligrafia rápida e legível. A rapidez é importante para que a criança possa dedicar mais atenção ao significado e menos à execução do gesto motor. A legibilidade é importante para que outros possam ler a mensagem que a criança quer comunicar. Há, contudo, inegáveis propriedades expressivas e estéticas na caligrafia, pelo que é importante que a criança desenvolva também uma consciência sobre elas.
Alves, R. A., Limpo, T., Salas, N., Joshi, R. M. (2019). Handwriting and spelling. In S. Graham, C. A. MacArthur, & M. Hebert (Eds.), Best practices in writing instruction (pp. 211-239). New York: Guilford Press.
Graham, S. (2009). Want to improve children’s writing? Don’t neglect their handwriting. American Educator, 33, 20-40.
James, K. H. (2017). The importance of handwriting experience on the development of the literate brain. Current Directions in Psychological Science, 26, 502-508.
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No início da aprendizagem, quer a decodificação (leitura) quer a codificação (escrita) exigem atenção e esforço. Não são processos imediatos. Mas é através deles que progressivamente se constrói essa fabulosa ferramenta mental que é saber ler e escrever sem esforço e com fluência.
Permitir que uma criança aprenda a norma ortográfica da língua é um objetivo básico do ensino da leitura e da escrita e tem repercussões importantes para o desenvolvimento da literacia. Aqui, abordamos as fontes a considerar no ensino da ortografia e como elas podem ser contempladas em atividades de ensino e aprendizagem.
Tal como ao aprender a andar de bicicleta nos tornamos capazes de ter equilíbrio sem pensar (automaticamente), também ao aprender a ler e a escrever ganhamos a capacidade de alguns processos funcionarem em piloto automático. É a aquisição de expertise, que nos torna mais autónomos e flexíveis.