Aprender A Ciência Mostra

O ‘Modelo Simples (mas não tão simples) de Leitura’

Não raras vezes circunscrevemos a leitura à capacidade de traduzir as palavras escritas em palavras faladas. Primeiro ensinamos a criança a ler, a decodificar as letras em sons, mais precisamente nas menores unidades sonoras da fala, vogal ou sílaba, como por exemplo, /ovu/ para ‘ovo’. Só depois partimos para a compreensão do que é lido. Expressões como “leu, mas não compreendeu” ou “lê e interpreta” reforçam esta ideia de que a compreensão está para além da leitura. Mas será mesmo assim? Afinal, do que falamos quando falamos em leitura?

1. O modelo simples de leitura

Ninguém tem dúvidas de que o objetivo último da leitura é aceder à mensagem que se encontra encoberta nos textos escritos. Também ninguém tem dúvidas de que este acesso ao significado pressupõe, desde logo, o conhecimento de um sistema estruturado de símbolos gráficos que convencionalmente representam a linguagem: o código escrito. No entanto, ainda que a conversão dos símbolos gráficos (as letras ou grafemas) em unidades sonoras (os fonemas) seja um requisito do ato de ler, a leitura plena só se observa quando o leitor acede ao sentido. A leitura define-se, assim, como o processo de extrair a informação contida num texto escrito, sobre a qual se constrói significado.

Decorre daqui que o ato de ler não se esgota apenas na decodificação das palavras escritas, pressupondo igualmente a compreensão do que é lido, pelo que uma definição que apenas valorize uma das componentes se encontra incompleta. Em finais da década de 80 do século XX, os psicólogos Philip Gough e William Tunmer contribuíram para o esclarecimento desta questão, ao conceptualizarem a leitura (L) como o resultado da relação estabelecida entre dois grupos de habilidades cognitivas: o reconhecimento de palavras (RP), ou decodificação, e a compreensão oral (CO). Este modelo, pela sua simplicidade conceptual, é conhecido por modelo simples de leitura, sendo frequentemente representado através da equação:

L = RP x COClique para aceder

A leitura com compreensão de um texto escrito requer, assim, num primeiro momento, a decodificação e o reconhecimento das palavras que o integram. Com o acesso a esta informação lexical é possível passar à interpretação, aplicando-se, para o efeito, os mesmos mecanismos empregues no processamento da linguagem falada.

Ainda que a versão inicial do modelo simples de leitura tenha enfatizado o caráter independente destes dois grupos de habilidades cognitivas, vários estudos têm contrariado esta perspetiva, evidenciando algum grau de sobreposição e de interdependência entre ambos os processos. Já o pressuposto de que ambos são estritamente necessários para que a leitura ocorra é mais consentâneo. Esta indispensabilidade do reconhecimento de palavras e da compreensão oral chama a atenção para o facto de nenhum dos grupos de habilidades ser suficiente para que se leia com compreensão. Ao assumirmos que cada uma das habilidades varia entre 0, ausência de competência, e 1, total competência, a leitura (com compreensão) não se verificará na ausência de uma delas. Decorre daqui que se a decodificação for zero não haverá compreensão da leitura. O mesmo resultado será observado se, mesmo perante uma boa capacidade de decodificação, a compreensão oral for zero.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 [Clique para abrir]

2. A importância do modelo simples de leitura para o desenvolvimento linguístico e para a aprendizagem da leitura

Ainda que se trate de um modelo teórico que não capta toda a complexidade inerente ao ato de ler, as implicações para o desenvolvimento linguístico e para a aprendizagem da leitura são inegáveis. Desde logo, ao considerar que a leitura é influenciada por dois grupos básicos de habilidades cognitivas, é possível, através de uma representação bidimensional, identificar quatro quadrantes a partir do nível de desenvolvimento/proficiência do reconhecimento de palavras (eixo horizontal, variando entre 0 e 1) e da compreensão oral (eixo vertical, variando entre 0 e 1). Assim, no quadrante superior direito encontrar-se-iam crianças com ambas as habilidades bem desenvolvidas (bom leitor); no quadrante superior esquerdo crianças com compreensão linguística na média, ou acima da média, mas incapazes de decodificar (dislexia); no quadrante inferior direito crianças com boas habilidades de decodificação mas com dificuldades na compreensão oral (hiperlexia); e no quadrante inferior esquerdo crianças com dificuldades em ambas as habilidades (dificuldades mistas de leitura). Importa aqui ressaltar que as dificuldades de leitura não são efetivamente tão simples quanto esta categorização deixa antever, já que são frequentemente mais heterogéneas e podem até ter outras causas. No entanto, quando a distribuição das crianças pelos quadrantes é possível e adequada, cada grupo pode receber um ensino diferenciado, com maior ênfase no ou nos grupos de habilidades menos desenvolvidos. Na verdade, ao se admitir algum grau de independência das habilidades de reconhecimento de palavras e de compreensão oral abre-se a                                    [Clique para abrir]                              possibilidade de as mesmas não se desenvolverem necessariamente em conjunto, o que poderá exigir abordagens pedagógicas distintas para o desenvolvimento de umas e de outras.

A esta implicação junta-se uma segunda, que resulta do caráter indispensável dos dois grupos de habilidades. Esta indispensabilidade remete para a necessidade de ambos serem considerados no ensino da leitura, de modo integrado, desde as fases iniciais da alfabetização. De facto, o aumento da compreensão leitora, ao ser mais expressivo quando ambos os grupos de habilidades aumentam e não apenas um, traz implicações pedagógicas evidentes. Uma instrução direcionada para o desenvolvimento de habilidades de decodificação, por exemplo, permitirá obter ganhos mais expressivos na leitura, se a criança tiver boas habilidades de compreensão oral do que se as tiver pouco desenvolvidas.

 A este propósito, importa chamar a atenção para o facto de este modelo considerar que o reconhecimento de palavras e a compreensão oral são habilidades de nível superior, construídas a partir de (sub)habilidades cognitivas e linguísticas específicas. Estas (sub)habilidades encontram-se descritas na estrutura das fundações cognitivas para a leitura, devendo constituir igualmente o foco de ensino do professor. De acordo com esta estrutura hierárquica, o reconhecimento de palavras envolve habilidades de codificação alfabética, suportadas pelos conceitos sobre a escrita e pelo conhecimento do princípio alfabético. Por sua vez, o princípio alfabético depende do conhecimento de letras e da consciência fonémica. Já em relação à compreensão oral, a extração de sentido a partir da fala depende da articulação entre o conhecimento do mundo e as habilidades inferenciais com o significado literal obtido através do conhecimento linguístico. Por sua vez, o conhecimento linguístico subdivide-se em fonológico, sintático e semântico.


3. A ciência mostra

A validade do modelo simples de leitura tem sido uma das dimensões mais amplamente escrutinada pela comunidade científica, encontrando evidência empírica num número expressivo de pesquisas. No seu conjunto, estas pesquisas permitem traçar três principais conclusões.

A primeira conclusão é que grande parte da variação na compreensão de textos parece ser efetivamente explicada pelos dois grupos de habilidades cognitivas que integram o modelo simples de leitura: o reconhecimento de palavras e a compreensão oral. Vários estudos apontam para variâncias compreendidas entre 40% e 80%, confirmando a importância que estes dois grupos aportam para a proficiência leitora. Ainda assim importa considerar uma das principais limitações apontadas ao modelo: o facto de não considerar o papel de outras variáveis na leitura, como é o caso, por exemplo, dos processos ativos auto-regulatórios.

A segunda conclusão prende-se com a importância relativa de cada um dos grupos de habilidades. Enquanto nos anos iniciais da escolaridade o reconhecimento de palavras é a variável que mais prediz a leitura, nos anos mais avançados o maior contributo é dado pela compreensão oral. Efetivamente, os estudos mostram que as habilidades de decodificação assumem maior importância no início da alfabetização, na medida em que o leitor aprendiz se encontra na fase de aprender a ler; já nos anos mais avançados, a compreensão passa a desempenhar um papel maior, fruto da transição da criança para a fase seguinte, de ler para aprender. Esta alteração no peso relativo de ambos os grupos de habilidades observa-se com o aumento da prática da leitura, em número e em complexidade, e com a automatização e fluência do reconhecimento de palavras.

Por fim, a terceira conclusão aponta para a existência de efeito da ortografia no peso relativo de ambos os grupos de habilidades. Em ortografias consistentes, a predição da leitura pela compreensão oral tem início mais precoce quando comparadas com ortografias inconsistentes. Isto acontece porque a aquisição das habilidades de decodificação e reconhecimento de palavras ocorre mais cedo, logo no 1.º ano de escolaridade.

Considerado um dos modelos mais robustos no domínio da literacia, a sua formulação em dois grupos básicos de habilidades fornece uma importante grelha de análise para captar a variação da habilidade da leitura. Complementado com a estrutura das fundações cognitivas, que clarifica e expande ambos os grupos, e atualizado com os avanços mais recentes nesta área, este quadro conceptual permite guiar a atividade do professor, ajudando-o a identificar as habilidades críticas que devem ser priorizadas durante a instrução da leitura.

Autoria: Maria Inês Gomes              Edição gráfica: Vera Antunes 

Publicação: 22.janeiro.2024

Recomendações

Perguntas Frequentes

Tenho um aluno que lê (decodifica) mas não compreende o que lê. Porquê?

A decodificação e o reconhecimento de palavras são habilidades indispensáveis para que a criança seja capaz de compreender o que lê. No entanto, elas não são suficientes já que a leitura requer um uso dessas habilidades combinadas com habilidades de compreensão oral. À luz do modelo simples de leitura, não é possível ler com compreensão na ausência de um (ou de ambos) os grupos de habilidades. Assim, se o aluno consegue decodificar o texto escrito mas não o interpreta corretamente, então muito possivelmente as dificuldades residem no facto de as habilidades de compreensão oral se encontrarem pouco desenvolvidas.

Para um melhor entendimento da natureza das dificuldades de compreensão oral apresenta-se útil recorrer à estrutura das fundações cognitivas. Assim, importará analisar se essas dificuldades se devem a um conhecimento geral limitado e a habilidades inferenciais subdesenvolvidas ou antes a um conhecimento linguístico deficitário. No primeiro caso, as crianças tenderão a exibir problemas em relacionar o significado de cada nova frase no discurso falado com os significados das frases que a precederam, a partir de inferências baseadas no conhecimento geral. No segundo caso, se as dificuldades se centrarem na compreensão de frases, então poderemos estar perante um desenvolvimento insuficiente do conhecimento sintático (relativo à ordem das palavras na frase) ou do conhecimento semântico (relativo ao significado das palavras e morfemas). Já se as dificuldades de compreensão oral derivarem de confusões entre palavras semanticamente distintas mas fonologicamente muito parecidas – os chamados pares-mínimos (e.g., ‘cato-gato’, ‘deserto-decerto’) –, o problema poderá residir no conhecimento fonológico.

Tenho um aluno que tem um bom desenvolvimento linguístico e compreende muito bem o que ouve mas não é capaz de ler (decodificar). Porquê?

Tal como referido no exemplo anterior, a capacidade de extrair significado do texto escrito (compreensão leitora) depende não só de boas habilidades de compreensão oral mas também de boas habilidades de reconhecimento de palavras. Ambas as habilidades têm de estar presentes para que a leitura ocorra. Assim, quando um aluno apresenta uma boa compreensão oral mas é incapaz de reconhecer palavras escritas, de forma precisa e fluente, muito provavelmente as suas dificuldades traduzem um desenvolvimento incipiente das suas habilidades de codificação alfabética. Muitas vezes este subdesenvolvimento é o resultado de uma instrução explícita insuficiente ou de oportunidades de prática limitadas ou até inadequadas (incluindo-se aqui a falta de feedback). Se após o reforço da instrução e de práticas de leitura significativas estas habilidades permanecerem subdesenvolvidas, então as dificuldades poderão advir de um reduzido conhecimento dos conceitos sobre a escrita, do princípio alfabético ou de ambos.

No primeiro caso, o aluno tenderá a exibir um conhecimento limitado sobre as formas e as convenções usadas na escrita para representar o discurso linguístico (por exemplo, desconhecendo que os espaços marcam os limites das palavras ou que a leitura se realiza da esquerda para a direita). Já no segundo caso, as dificuldades poderão traduzir um problema na apropriação do princípio alfabético, isto é, na tomada de consciência de que as letras, e conjuntos de letras, isto é, os grafemas, são usados para representar os fonemas das palavras faladas. De acordo com a estrutura das fundações cognitivas, o conhecimento do princípio alfabético depende de dois conjuntos adicionais de conhecimentos: o conhecimento de letras e a consciência fonémica. Decorre daqui que as dificuldades de decodificação poderão refletir, respetivamente, um baixo desenvolvimento das habilidades de reconhecimento e de manipulação das letras do alfabeto (incluindo a discriminação entre letras visualmente parecidas e entre maiúsculas e minúsculas), ou uma reduzida consciência de que a fala se decompõe em unidades sonoras mínimas, os fonemas, e de que essas unidades podem ser manipuláveis (saber, por exemplo, que as palavras ‘mar’ e ‘paz’ têm três fonemas cada uma, que ‘ar’ e ‘ás’ é o que fica se apagarmos o primeiro fonema e que ‘má’ e ‘pá’ é o que sobra se apagarmos o último fonema).

Devemos começar por ensinar primeiro a decodificação e só depois a compreensão?

Sendo habilidades com algum grau de independência, o desenvolvimento da compreensão leitora pressupõe um ensino diferenciado das mesmas, privilegiando-se o reconhecimento de palavras nos anos iniciais da alfabetização e a compreensão oral nos anos seguintes. Ainda assim, a opção por uma abordagem integrada, desde o 1.º ano, direcionada para ambos os grupos de habilidades é a mais aconselhada, principalmente em ortografias mais consistentes, onde a apropriação das correspondências entre grafemas e fonemas é mais rápida devido à sua natureza unívoca.

Vejamos o seguinte exemplo: no início do 1.º ano, o João e a Maria apresentavam habilidades de compreensão oral (CO) medianamente desenvolvidas, mas não eram capazes de reconhecer qualquer palavra escrita (RP). Consequentemente, nenhuma das crianças era capaz de ler (L), pois zero vezes qualquer coisa é sempre zero.


Durante o decurso do ano letivo, ambas as crianças foram alvo de instrução explícita das habilidades de reconhecimento de palavras; no entanto, apenas a Maria viu essa instrução complementada com o ensino de habilidades de compreensão oral. Ao fim de alguns meses, o João e a Maria eram já capazes de decodificar algumas palavras. Admitindo que o desenvolvimento das habilidades de reconhecimento de palavras foi idêntico em ambas as crianças, os ganhos na compreensão leitora foram maiores na que usufruiu de instrução na compreensão da linguagem: 0,4 para a Maria vs. 0,25 para o João.

Qual a importância do modelo simples de leitura para a prática do professor?

Sabemos que os anos iniciais da escolaridade são cruciais para fornecer as bases necessárias para alavancar o processo de construção do leitor hábil. Por essa razão, importa adotar práticas pedagógicas que melhor favoreçam a aprendizagem da linguagem escrita. O modelo simples de leitura tem-se revelado uma abordagem teórica bastante útil, por se tratar de um modelo causal direto que vê no reconhecimento de palavras e na compreensão oral a chave para a proficiência leitora. O conhecimento destes dois grupos de habilidades, e respetivas (sub)habilidades representadas na estrutura das fundações cognitivas, abre assim caminho para o desenho de práticas pedagógicas que explicita e intencionalmente as desenvolvam.

 Para além de permitir a adoção de práticas pedagógicas direcionadas para a promoção das habilidades cognitivas e linguísticas que melhor predizem a leitura, este modelo tem ainda a vantagem de fornecer uma grelha para aferir o conhecimento que as crianças possuem e que lhes falta adquirir para se tornarem leitores hábeis. Apesar de não responder a como a leitura se desenvolve ao longo do tempo, este modelo permite determinar quanto está desenvolvido num dado momento temporal. Assim, trazer este modelo para a sala de aula vai permitir ao professor ficar a conhecer quais as habilidades cognitivas menos desenvolvidas e, deste modo, adotar práticas pedagógicas diferenciadas, ajustadas às necessidades individuais dos seus alunos. Isto é importante porque na ausência de instrução explícita especificamente direcionada para aquelas habilidades de leitura que se encontrem subdesenvolvidas, a criança tenderá a privilegiar estratégias de aprendizagem menos eficazes (e.g., recurso a pistas visuais e/ou contextuais para ler palavras). Ora, a utilização continuada de estratégias compensatórias ineficazes conduz inevitavelmente à solidificação das dificuldades de aprendizagem, com claras repercussões negativas para a realização académica futura.

LEITURAS SUGERIDAS

Gomes, I. (2022). Compreendendo o ato de ler: A perspetiva do modelo simples de leitura. In C. F. de P. Nadalim (Coord.), R. A. Alves & I. Leite (Eds.), Ensino da leitura e da escrita baseado em evidências (cap. 13; pp. 193-215). Fundação Belmiro de Azevedo.

Guimarães, S. R. K., & Paula, F. V. (Orgs.) (2019). Compreensão da leitura: Processos cognitivos e estratégias de ensino (vol. 2). Vetor.

Hoover, W. A., & Tunmer, W. E. (2020). The cognitive foundations of reading and its acquisition. A framework with applications connecting teaching and learning. Springer.

Mota, M. P. E., & Spinillo, A. (Orgs.) (2013). Compreensão de textos. Casa do Psicólogo.

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