A escrita é uma competência complexa. Requer um conjunto amplo de processos cognitivos que interagem entre si: processos grafomotores necessários para a escrita das letras (caligrafia), processos ortográficos (lexicais/ortográficos relacionados com a representação ortográfica das palavras e sublexicais/fonológicos relacionados com a conversão dos fonemas nos grafemas) e processos associados ao planeamento, textualização e revisão de textos. As dificuldades na escrita podem ocorrer num ou mais destes processos.
1. Dificuldades na escrita
A escrita é uma habilidade essencial em qualquer sistema educativo. Entre 30% a 60% das atividades realizadas durante um dia escolar requerem esta competência. Além de relevante para a aprendizagem, a escrita possibilita um novo espaço para a imaginação e para a expressão dos conhecimentos, ideias e emoções. A escrita permite o registo físico, para memória futura, das informações que se pretendem transmitir e abre um sem-número de possibilidades de comunicação. Por outro lado, vários estudos na área das neurociências têm demonstrado que a aprendizagem da leitura e escrita conduz a uma reorganização da conectividade neuronal e a um aumento da volumetria do cérebro. Assim, a importância da leitura e escrita não se limita à aquisição de conhecimentos, mas também ao desenvolvimento da linguagem e de diversas funções cognitivas.
A aprendizagem da escrita é particularmente complexa, tal como a da leitura. Necessita de um ensino formal, envolve uma multiplicidade de funções cognitivas (e.g., fonológicas, ortográficas, memória de trabalho, grafomotoras, visuopercetivas) e a ativação de várias regiões corticais. Para a grande maioria das crianças a aprendizagem da leitura e escrita desenvolve-se com relativa naturalidade, contudo, para outras, esta aprendizagem poderá ser particularmente difícil.
Muito embora a leitura e escrita partilhem um conjunto de processos (e.g., fonológicos e lexicais/ortográficos), existem diferenças que importa assinalar. No Português Europeu as correspondências fonema-grafema são frequentemente mais complexas do que as correspondências grafema-fonema (e.g., o fonema /s/ pode ser escrito por cinco grafemas — <s>, <ss>, <c>, <ç>, e <x>). Durante a leitura a representação visual das palavras apenas necessita de ser reconhecida. Na escrita a representação ortográfica tem que ser obtida de modo completo e independente a partir do léxico ortográfico. Isto é, do sistema de memória a longo-prazo que permite o reconhecimento visual da palavra e a sua correta produção. As crianças com dificuldades na leitura beneficiam do contexto, isto é, da história que estão a ler, para descodificarem e reconhecerem as palavras seguintes. Enquanto a leitura é um processo mais automático e rápido, a escrita é mais lenta devido à execução grafomotora da escrita e requer um maior esforço na consolidação das representações ortográficas, ou seja, da forma escrita das palavras.
De um modo geral, a escrita envolve um conjunto de processos interdependentes relacionados com a caligrafia (processos periféricos), com a ortografia (processos centrais) e com o planeamento, textualização e revisão de textos (processos de ordem superior). As crianças podem manifestar dificuldades num ou mais destes processos.
As dificuldades na caligrafia estão associadas à legibilidade e à fluência ou rapidez de escrita. As dificuldades na legibilidade caracterizam-se por alterações:
a) na forma - letras distorcidas, simplificadas ou com diferente orientação no espaço,
b) no tamanho - letra excessivamente grande ou demasiado pequena, segmentos ascendentes ou descendentes das letras excessivamente curtos ou longos,
c) no espaçamento - as letras podem surgir desligadas ou sobrepostas, o espaçamento entre as palavras pode ser exagerado ou quase inexistente,
d) no alinhamento - as letras e palavras podem surgir bastante acima ou abaixo da linha de base,
c) no traçado - pressão anormal exercida sobre o lápis e que conduz a um traçado demasiado suave ou grosso.
Uma fluência de escrita lenta pode impedir a conclusão dos exercícios no tempo previsto, para além de poder levar ao esquecimento das ideias e a dificuldades no planeamento dos textos, uma vez que a criança não consegue escrever ao mesmo ritmo que as ideias lhe vão surgindo. Estas dificuldades na caligrafia resultam frequentemente de alterações nos processos grafomotores da escrita e podem configurar uma disgrafia.
As dificuldades na ortografia incluem, sobretudo, erros fonológicos, lexicais/ortográficos e gramaticais.
Os erros fonológicos na escrita são alterações às correspondências fonema-grafema, resultam de dificuldades na via sublexical (ou fonológica) e incluem:
a) inserções - *muinto em vez de muito,
b) omissões - *jadim em vez de jardim,
c) substituições - *faca em vez de vaca,
d) inversões/transposições de letras - *parto em vez de prato.
Os erros lexicais são aqueles que preservam a fonologia da palavra (i.e., a leitura da palavra incorretamente escrita é pronunciada de forma igual à original), mas encontra-se ortograficamente incorreta (i.e., *mácimo em vez de máximo; *izame em vez de exame). A escrita correta das palavras irregulares depende do acesso à representação ortográfica da palavra que se encontra no léxico ortográfico (via lexical ou ortográfica). Um erro numa palavra irregular (para ser lida corretamente precisa de ser processada pela via lexical) processada pela via sublexical pode assumir formas diferentes consoante seja na leitura ou na escrita. Por exemplo, na escrita a palavra exame surge como *izame, mas na leitura pode ser lida como *échame [ɛˈʃɐmɨ].
Os erros gramaticais são aqueles que conduzem à escrita incorreta da palavra devido à violação das regras gramaticais e que envolvem, por exemplo, formas do singular/plural (*capitões em vez de capitães), palavras homófonas (*coser em vez de cozer), entre outros.
A dificuldade na precisão ortográfica é um dos principais sintomas da perturbação da aprendizagem específica, quer quando ocorre concomitantemente com os défices na leitura (dislexia) ou isoladamente (perturbação da aprendizagem específica com défice na expressão escrita; por vezes também designada de disortografia).
Durante a escrita de um texto para além da caligrafia e da precisão ortográfica estão ainda envolvidos processos de ordem superior relacionados com o planeamento, textualização e revisão do texto escrito. As dificuldades nestes processos levam a fragilidades em obter e estruturar as ideias durante a escrita de um texto (planeamento); em procurar a palavra ou frase mais adequada para expressar uma ideia (textualização); e em efetuar revisões e modificações ao texto inicialmente escrito (revisão).
As exigências cognitivas e o esforço que as crianças têm que despender durante as atividades de escrita podem fazer com que lhes seja particularmente difícil, extenuante e pouco gratificante a sua realização.
É importante salientar que a presença destas dificuldades não significa necessariamente uma perturbação da aprendizagem específica com défice na leitura (dislexia) e/ou na expressão escrita, ou uma disgrafia. De facto, para a maioria dos alunos estas dificuldades ocorrem apenas na fase inicial da aprendizagem devido, por exemplo, à falta de prática ou da sistematização das atividades. Felizmente, nestas situações, as dificuldades na escrita são transitórias e frequentemente ultrapassadas através de treino específico e continuado em contexto de sala de aula. O papel do professor no reforço das atividades de escrita é essencial para que os alunos tenham o tempo necessário e a oportunidade de consolidar os vários processos envolvidos e, deste modo, potenciar o interesse pela aprendizagem. O treino deverá iniciar logo que sejam observadas as primeiras fragilidades na caligrafia, na ortografia e/ou no planeamento, textualização e revisão de textos.
Contudo, para um número reduzido de alunos as dificuldades na leitura/escrita poderão ser particularmente significativas, persistentes e menos responsivas ao treino sistemático realizado pelo professor. Nestes casos é importante compreender a natureza das dificuldades através de uma avaliação especializada, pois podem estar associadas à perturbação da aprendizagem específica (as dificuldades decorrem de alterações neurofuncionais). Esta avaliação deverá ser realizada por profissionais especializados na avaliação neuropsicológica, uma vez que implica a mensuração dos processos envolvidos na leitura e escrita, os seus preditores neurocognitivos (e.g., consciência fonológica, nomeação rápida, memória de trabalho e funções executivas) e a exclusão de condições clínicas (e.g., intelectuais, sensoriais, emocionais) que possam explicar as dificuldades de aprendizagem. Na avaliação são utilizados instrumentos aferidos e estandardizados para a população portuguesa, com propriedades psicométricas e níveis de sensibilidade adequados na identificação destas dificuldades específicas.
2. A ciência mostra
A aprendizagem da escrita envolve vários processos (grafomotores, ortográficos, planeamento, textualização e revisão de textos) e a interação de diversos domínios (neurológico, cognitivo, motor e visuopercetivo). Estima-se que aproximadamente 15% dos alunos apresentam dificuldades num ou mais processos de escrita, sendo das dificuldades de aprendizagem mais frequentes em idade escolar.
As investigações têm observado uma estreita interligação entre os processos centrais (ortografia) e os processos periféricos (caligrafia) durante a escrita de palavras. De um modo genérico, aquando do ditado de uma palavra familiar (gato), a sequência dos fonemas (/ɡatu/) conduz à ativação de uma representação semântica que, por sua vez, levará à ativação da representação escrita da palavra que se encontra no léxico ortográfico, permitindo a identificação da forma e ordem das letras que compõem a ortografia da palavra. Se a palavra a ser escrita for uma pseudopalavra - palavra que não consta do léxico de uma língua, mas que obedece às regras de formação e de pronúncia dessa língua - ou uma palavra desconhecida será ativada a via sublexical através da correspondência fonema-grafema. Após esta representação ortográfica da palavra, que é mantida temporariamente na memória de trabalho, são executados os processos grafomotores da escrita. Estes envolvem a ativação do planeamento grafomotor que contém os movimentos necessários para escrever cada uma das letras (a sequência de traços) e a sua conversão no respetivo movimento motor para o órgão efetor (e.g., mão direita).
Várias investigações têm analisado a interdependência destes processos e a sua relevância para a compreensão das dificuldades na escrita, em particular das crianças com dislexia e/ou disgrafia. Os resultados têm demonstrado que as dificuldades nos processos cognitivos relacionados com a ortografia predizem a qualidade da caligrafia durante os primeiros anos de escolaridade e podem afetar significativamente a sua legibilidade e rapidez. Deste modo, as dificuldades na descodificação fonológica e no acesso ao léxico ortográfico conduzem a um maior número de hesitações e pausas durante a escrita, o que pode afetar a qualidade da caligrafia. Estes dados podem explicar, em parte, a elevada comorbilidade entre a dislexia e a disgrafia.
Outros estudos têm demonstrado que as representações ortográficas das palavras podem ainda não estar totalmente concluídas quando a criança inicia o movimento grafomotor da escrita. A situação é mais evidente nas crianças com dislexia e disgrafia do que nas crianças com desenvolvimento típico. Estes resultados podem explicar as diversas correções de letras e pausas durante a escrita que as crianças com dislexia fazem e que afetam a sua legibilidade e fluência.
Por sua vez, enquanto a escrita à mão e a ortografia não se encontrarem automatizadas, as crianças terão dificuldades em dedicar os recursos cognitivos necessários para os restantes aspetos da escrita, nomeadamente aqueles relacionados com o planeamento, textualização e revisão. Assim, a presença de dificuldades num dos processos de escrita poderá contribuir para o surgimento de fragilidades nos restantes processos. Razão pela qual uma instrução estruturada no início da escolaridade é essencial para prevenir dificuldades generalizadas na aprendizagem e para que a criança possa desfrutar de todas as potencialidades da escrita.
Autoria: Octávio Moura Edição: Andreia Lobo
Publicação: 22.março.2021
O mais frequente é a ocorrência de dificuldades cumulativas na leitura e escrita. Esta situação é evidente em crianças com desenvolvimento típico ou com perturbação da aprendizagem específica. Por exemplo, na dislexia as dificuldades ocorrem nos processos leitores (e.g., precisão, fluência e compreensão da leitura) e ortográficos. Contudo, apesar de menos frequente, é possível as crianças apresentarem dificuldades apenas num dos domínios.
Apesar da interdependência entre os processos envolvidos na escrita (i.e., caligrafia; ortografia; e planeamento, textualização e revisão de textos) é possível a presença de dificuldades apenas num dos processos. Por exemplo, as crianças com dificuldades na caligrafia (e.g., disgrafia) poderão apenas manifestar alterações na legibilidade e rapidez de escrita, sem que estejam presentes dificuldades na leitura, na ortografia e no planeamento, textualização e revisão de textos.
A rapidez de escrita desenvolve-se gradualmente em função da experiência com a escrita. A recomendação mais comum passa por desenvolver o hábito de escrever frequentemente letras, palavras, frases e textos. Uma das estratégias mais utilizadas consiste em copiar rapidamente um conjunto de palavras ou frases durante um determinado período de tempo.
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