Existe consenso generalizado acerca da natureza complexa da compreensão da leitura. Sabemos que é influenciada pelas capacidades linguísticas e cognitivas do leitor e pelos processos que mobiliza enquanto lê. Mas é também condicionada pelas características do material a ler – conteúdo, género e tipo de texto – e por outros fatores contextuais, como, por exemplo, as condições físicas em que a leitura decorre.
A compreensão da leitura é entendida como o produto da interação de, pelo menos, três grandes grupos de fatores: i) leitor, ii) texto e iii) contexto.
No fator leitor são incluídas variáveis como as estruturas cognitivas e afetivas e os processos de leitura que aquele mobiliza. As estruturas cognitivas incluem o conhecimento da língua, o conhecimento ortográfico, os conhecimentos prévios e os recursos cognitivos. Por sua vez, os processos podem ser classificados em microprocessos, processos de integração, macroprocessos, processos de elaboração e processos metacognitivos.
Estruturas cognitivas
1. Conhecimento da língua
A compreensão da leitura depende do domínio que o leitor possui da linguagem oral (ver Etapa Preparar). As dificuldades registadas por muitos alunos ao nível da compreensão da leitura resultam de problemas de compreensão da linguagem oral. Estes, por sua vez, podem ter origem num vocabulário muito reduzido e/ou na falta de vocabulário específico requerido pelo material a ler, mas podem, também, ter origem na organização sintática do texto. Além disso, a compreensão da leitura exige que o conhecimento linguístico seja flexível, de modo a permitir ao leitor adaptar-se de forma dinâmica a diferentes significados das palavras escritas. Exemplo: diferenciar canto como forma do verbo cantar, do canto de uma sala. Também uma palavra conhecida pode deixar de o ser em associação com outras palavras, como é o caso das expressões idiomáticas, perturbando ou bloqueando o acesso à compreensão.
2. Conhecimento ortográfico
A ortografia é o sistema de convenções pelas quais se rege a escrita de uma determinada língua e que permite que a grafia das palavras seja preservada. Este sistema de convenções inclui: as regras de conversão grafema-fonema; um sistema de notações, como os acentos, a cedilha, o til, os apóstrofos ou o hífen; e um sistema de pontuação. O conhecimento ortográfico permite, por exemplo, perceber o significado de palavras homófonas, identificar uma ação como já realizada, como no caso da acentuação da primeira pessoa do plural do pretérito perfeito de alguns verbos (exemplo: ficamos/ficámos), ou antecipar que, num determinado texto, após dois pontos seja apresentada uma enumeração.
3. Conhecimentos prévios
Os conhecimentos relacionados com o conteúdo do texto de que o leitor dispõe influenciam a compreensão da leitura. Assim, a sobreposição entre o conhecimento do leitor e o conteúdo do texto pode facilitar e/ou dificultar a execução das tarefas associadas a cada um dos níveis de compreensão. Em particular, a capacidade para realizar inferências, que é uma das caraterísticas diferenciadoras dos bons leitores, é um processo altamente guiado pelos conhecimentos prévios do leitor.
4. Recursos cognitivos
A compreensão da leitura exige um conjunto de recursos cognitivos. A memória de trabalho e o raciocínio têm vindo a ser particularmente estudados, dado o seu contributo para a realização de inferências. A realização de inferências é essencial para a compreensão da leitura.
Durante a leitura, a memória de trabalho permite que as proposições e frases sejam mantidas na memória pelo tempo suficiente (10 a 15 segundos) para que a informação nova possa ser processada e integrada. Se a leitura for lenta e custosa, este tempo é ultrapassado e ocorre perda de informação.
A investigação tem também mostrado o papel do raciocínio – não só verbal, mas também não verbal – para a compreensão da leitura. Por exemplo, a compreensão de metáforas como “coração de oiro” exige raciocínio analógico, isto é, que o leitor relacione o coração como fonte de afetos com o oiro como fonte de riqueza.
Estruturas afetivas
Quando lê, o leitor transporta para este ato não só um conjunto de conhecimentos, mas também de interesses e de expetativas, derivados das suas experiências de vida e de leitura. Nos anos pré-escolares, estas experiências de leitura acontecem mediadas pela voz dos outros. Quando alguém se torna capaz de ler, de forma autónoma, como resultado do ensino formal da leitura, tal não garante que o queira fazer, por prazer ou por qualquer outra razão de índole pessoal e /ou social. Este querer vai depender, em larga medida, dos seus interesses, das suas necessidades, da sua motivação e da sua atitude face à leitura.
Os processos
O conhecimento é importante, mas precisa de ser ativado e processado durante a compreensão da leitura. Durante a leitura existem vários processos que são ativados e que têm de ser articulados:
1. Processos ligados ao reconhecimento de palavras (decodificação), ou seja, os microprocessos percetivos e léxicos;
2. Processos ligados à extração de significado, nomeadamente:
a) os microprocessos associados à identificação e à compreensão das unidades sintáticas de significado e à compreensão das diferentes funções das unidades de significado;
b) os processos de integração, que incluem a compreensão de expressões referenciais, de conetores e a realização de inferências;
c) os macroprocessos, que incluem a identificação de ideias principais, o resumo e a compreensão da estrutura do texto;
d) os processos de elaboração, que incluem a realização de previsões, a construção de imagens mentais e a realização de raciocínios dedutivos ou indutivos;
e) os processos metacognitivos, que incluem a identificação da perda de compreensão e a mobilização de estratégias de recuperação da compreensão.
(ver Leitura sugerida)
No fator texto são incluídas as variáveis que dizem respeito ao material a ler, nomeadamente o conteúdo e a estrutura, que variam em função do género e do tipo de texto. Os objetivos de leitura são diferentes em função do tipo de texto a ler. Diferentes são também as estratégias de leitura exigidas. Os objetivos de um leitor que lê um texto expositivo sobre os suricatas serão diferentes dos objetivos de um leitor que lê sobre a origem do universo, embora, em última análise, possam ambos ser textos expositivos.
No fator contexto são incluídas variáveis que, de modo indireto, influenciam a compreensão, como o interesse pelo conteúdo do texto, as influências dos pares ou as condições físicas em que a leitura decorre. Ao leitor adulto normalmente é-lhe dada toda a liberdade de escolha do material a ler. É-lhe dado também o direito de não ler. Todavia, em idades escolares há prescrição de leitura, pois esta é a principal fonte de aquisição de conhecimentos. Assim sendo, é importante que se atenda aos conhecimentos, expectativas e interesses dos alunos.
Autoria: Fernanda Leopoldina Viana e Iolanda Ribeiro Edição: Andreia Lobo
Publicação: 22.setembro.2020
O ensino explícito do vocabulário é um dos recursos utilizados para promover a compreensão da leitura. As principais estratégias para a expansão do vocabulário são:
a) a leitura;
b) a modelagem do procedimento de inferência de significado a partir de pistas contextuais
Exemplo: “Agora estou muito cansado, disse ele, pausadamente.” A palavra “pausadamente” deriva da palavra “pausa”, que quer dizer paragem... por isso, “falar pausadamente” deve ser falar com algumas paragens pelo meio… Estava muito cansado… Então, terá falado depressa ou devagar?
c) o ensino direto
Exemplo: fornecendo um glossário no texto a ler ou explicando – antes ou durante a leitura – o significado das palavras que se antecipa serem desconhecidas dos alunos/leitores.
Para que o ensino direto seja realmente eficaz, pode não ser suficiente o fornecimento prévio dos significados das palavras ou expressões eventualmente desconhecidas do leitor. Pode ser necessário complementá-lo com a formulação de novas frases que integrem os vocábulos ou expressões aprendidas. No entanto, um vocábulo pode ser conhecido apenas com um determinado sentido, pelo que é importante apoiar também a compreensão da polissemia. Exemplo: a palavra “manga” pode ser apenas conhecida como sendo a parte de uma peça de vestuário, e não como o nome de um fruto.
Pode ainda acontecer que uma determinada palavra seja conhecida, mas não em associação com outras, como é o caso das expressões idiomáticas. Exemplo: “ficar a ver navios” ou “lágrimas de crocodilo”, gerando confusões e podendo dificultar a compreensão.
À entrada no 1.º ciclo do ensino básico, as características dos alunos, no que aos conhecimentos diz respeito, volta a reposicionar a influência da educação pré-escolar, nomeadamente na ativação da curiosidade das crianças. Crianças curiosas são crianças que dispõem de um maior conhecimento sobre o mundo que as rodeia. São crianças observadoras, que questionam, que levantam hipóteses, que buscam ativamente respostas para as suas dúvidas.
Nos anos pré-escolares, ler para as crianças e proporcionar-lhes práticas culturais diversificadas, como idas ao teatro, a espetáculos, a exposições, a museus, a fábricas, visitas a parques ou sítios arqueológicos, entre muitas outras, falando com elas sobre o que há de novo e interessante para conhecer, são vias eficazes para promover a aquisição de conhecimentos que se irão revelar valiosos para a compreensão da leitura. Questionar as crianças sobre o mundo que as rodeia e procurar, com elas, resposta para as mesmas é outra forma de ampliar estes conhecimentos. Com a aprendizagem da leitura, a criança passa a dispor de uma poderosa ferramenta para adquirir conhecimento. Uma ferramenta que abre as portas de acesso a outras práticas culturais. Não é, por isso, de admirar que os estudos PISA mostrem a ligação estreita entre práticas culturais e compreensão da leitura.
Estes dados justificam a necessidade de, por um lado, contemplar a expansão e/ou de ativação de conhecimentos prévios no ensino da compreensão da leitura, e, por outro lado, a necessidade de ensino explícito de estratégias cognitivas e metacognitivas. Deste modo, os alunos ficam capacitados para o uso de ferramentas que lhes permitam identificar as situações em que é preciso procurar informações que, sendo necessárias para a compreensão, não estão presentes nos textos.
Um conhecimento lexical alargado e uma leitura fluente permitem que a memória de trabalho do leitor não seja sobrecarregada, libertando assim recursos para a extração de sentido. Durante a leitura, se o leitor encontrar muitas palavras cujo significado desconhece ou se ainda revelar esforço para decodificar, terá dificuldades em manter na memória de trabalho a informação já extraída, de modo a que, resolvido o problema da identificação da palavra e do acesso ao seu significado, possa progredir ao nível da compreensão.
Os alunos que conseguem reter mais informação na memória de trabalho terão mais facilidade em gerar inferências e em efetuar conexões entre as diferentes partes do texto. Se a memória de trabalho se encontrar sobrecarregada, nomeadamente pelo esforço despendido na identificação das palavras escritas, poderá ser mais difícil ao aluno, em simultâneo, desativar ou ignorar informação irrelevante ao nível do próprio texto, bem como convocar os conhecimentos prévios necessários ao processamento da informação.
A leitura fluente, isto é, uma leitura precisa, expressiva e automatizada, é importante para que a compreensão ocorra, porém não é suficiente para assegurar que o leitor consegue compreender um texto.
Em línguas como o português, grande parte das palavras pode ser lida aplicando as regras de conversão grafema-fonema. Por exemplo, pode-se “ler” de forma silabada a palavra “sardanapalo”, pronunciando-a corretamente, isto é, decodificando-a. Esta decodificação não assegura o acesso ao significado, isto é, a palavra foi bem decodificada mas se o seu significado não é conhecido e o texto não possui pistas para a sua inferência, a compreensão não ocorre.
A sobrevalorização da importância atribuída à decodificação é, talvez, responsável por um dos equívocos no ensino da compreensão da leitura – o de considerar que, uma vez adquirido o sistema de notação (vulgo, código), o aluno passará a ser capaz de compreender o que lê. A extração e a construção de significado(s) exigem ao leitor o funcionamento articulado de um enorme conjunto de processos, como a convocação de conhecimentos prévios, a ativação de processos que envolvem efetuar previsões, realizar inferências, construir imagens mentais, elaborar sínteses, monitorizar a compreensão, entre outros. Ajudar os alunos a lidar com esta complexidade exige ensino explícito. Não é também suficiente a prescrição “ler, ler, ler muito”. Por si só, a prática de leitura ”solitária” não assegura a maximização da compreensão.
Apesar de na literatura estarem identificadas diferentes estratégias promotoras de literacia familiar, as estratégias que implicam envolvimento parental (formais e informais) tendem a ser mais exploradas. Em particular, a leitura partilhada de histórias entre pais e filhos e a tutoria parental sobre aspetos específicos da escrita são as práticas que tendem a apresentar resultados de maior eficácia no futuro desempenho dos jovens leitores.
Leitores fluentes são capazes de identificar as palavras de forma precisa e automática. Libertam, assim, recursos cognitivos para a compreensão da leitura. Por essa razão, a fluência de leitura tem de ser sistematicamente trabalhada em contexto de sala de aula.
A compreensão da leitura é, em simultâneo, um objetivo de aprendizagem e um meio de aceder ao conhecimento. Assim sendo, tem um forte impacto não só no sucesso escolar, mas também noutras esferas da vida dos sujeitos.
A compreensão da leitura exige a capacidade de o leitor monitorizar o que compreende e o que não compreende enquanto lê. Esta capacidade requer a ativação de estratégias de leitura e de autorregulação. Os dados da investigação mostram, de modo inequívoco, o seu impacto positivo na compreensão.