O português é uma escrita alfabética – quando escrevemos, as letras mostram a sequência dos fonemas nas palavras. Mas nem sempre há uma correspondência fixa, de um-para-um, entre letra e som/fonema. As irregularidades do código tornam a aprendizagem, tanto da leitura como da escrita, menos linear e mais difícil.
1. As irregularidades do código ortográfico português
O português é uma escrita alfabética – quando escrevemos, as letras mostram a sequência dos fonemas nas palavras. Isto é verdade, mas tem a sua dose de simplificação. Porque, mesmo nas escritas alfabéticas, nem sempre há uma correspondência fixa, de um-para-um, entre letra e som/fonema. Um exemplo de correspondência fixa acontece com o som /t/ e a letra <t>: o som /t/ escreve-se sempre com a letra <t>, que por sua vez se lê sempre como /t/. É uma relação fixa um-para-um. Mas vejamos por que razão isto nem sempre acontece nas escritas alfabéticas.
Há situações em que as correspondências dependem de regras relativas ao contexto: por exemplo, o <s>, que se lê /s/ no começo de palavra (“sino”), entre vogais lê-se sempre /z/ (“casa”), ou o <g> antes de <e> ou <i> lê-se sempre /j/ (“gente”, “giro”, e não /g/ como em “gato”). Estas são situações mais complexas do que simplesmente uma relação fixa letra/fonema; mas não são excessivamente complexas, pois elas preservam a regularidade a nível de contexto. Por outras palavras, mantêm a consistência nas correspondências entre letras e sons/fonemas.
Noutras situações não há regras bem definidas que nos permitam ler ou escrever corretamente, e temos de usar a nossa memória a respeito da palavra. Trata-se das irregularidades. Como o termo indica, são situações em que não nos podemos socorrer de uma regra, mesmo de contexto, para ler ou escrever bem. Temos de recorrer ao conhecimento armazenado em memória sobre a forma da palavra — como ela soa e como se escreve. Por exemplo, várias palavras que começam pela sílaba (falada) /si/ se escrevem com a letra <c> (“cima, cinco, cicatriz, cinema, citar, civil”), mas “sina” escreve-se com <s>. Para escrever corretamente esta palavra, temos de saber que “sina” se escreve com <s>, ou seja, temos de ter esta informação arquivada na nossa memória. Nestes casos, há inconsistência ortográfica nas correspondências entre letras e sons/fonemas. Estas inconsistências (um termo um pouco mais preciso do que irregularidade e muito usado nos estudos científicos de psicolinguística) tanto podem ocorrer na escrita, como é o caso do exemplo acima, como na leitura. Tomemos as palavras “café” e “cacho”: ambas começam por <ca>, mas uma lê-se /câ/ e outra /cá/.
Em português há mais inconsistências na escrita do que na leitura, ou seja, nas correspondências de som/fonema para letra do que na direção inversa, de letra para som/fonema. Esta assimetria faz com que seja mais fácil ler do que escrever corretamente.
2. A importância das irregularidades das correspondências grafema/fonema e fonema/grafema
O facto de haver palavras que não podem ser ‘decodificadas’ através de regras bem definidas, tanto na leitura como na escrita, torna a aprendizagem menos linear e certamente mais difícil. Faz com que não seja suficiente dominar bem as regras de conversão letra/som para ser capaz de ler e escrever com relativa facilidade, principalmente se for usado um vocabulário rico. Usando mais palavras, e mais variadas, torna-se mais provável encontrar palavras inconsistentes. Faz também com que, do ponto de vista do ensino, seja aconselhável atender de modo diferenciado à direção da escrita (do som/fonema para a letra), mais difícil, e à direção da leitura (da letra para o som/fonema), mais fácil.
Uma ilustração de como, mesmo na leitura, as inconsistências afetam o leitor principiante pode ouvir-se no exemplo aqui, em que uma criança de seis anos faz a leitura da palavra “bonito”.
A criança começa por ler a sequência de letras <bo> como / bu/, mas passa para /bó/. Segue para o <n>, avança com a pseudoleitura “boné”, mas autocorrige e continua com o resto da palavra. Chega ao fim com /bónitu/, que, todavia, não existe como palavra e que certamente nunca ouviu antes. Dá-se certamente conta disto e, recorrendo ao seu léxico mental (conhecimento sobre as palavras), faz então a leitura correta da palavra: /bu’nitu/. Resolveu bem a inconsistência na leitura da letra <o> (que, por vezes, se lê /ó/, outras /ô/ e outras /u/), mas não foi um processo simples nem imediato. Chegou à leitura correta da palavra porque conhecia a palavra “bonito”.
3. A ciência mostra
Os estudos sobre a aprendizagem da leitura e da escrita são unânimes em mostrar que os progressos nesta aprendizagem dependem em parte das características das palavras. É possível ler muito bem palavras curtas e familiares, e ao mesmo tempo continuar a soletrar outras palavras, nomeadamente palavras longas, desconhecidas, e/ou com uma ortografia complexa (por exemplo, dependente de regras contextuais) ou inconsistente. Na escrita, sucede o mesmo.
Muito elucidativa é a comparação da aprendizagem da leitura e da escrita em línguas diferentes. Como umas línguas têm uma escrita mais regular (por exemplo, o alemão, o espanhol, o finlandês) e outras, menos regular e com mais inconsistências (o inglês, o francês), será que os progressos na aprendizagem avançam ao mesmo ritmo em todas as línguas?
Um importante estudo europeu procurou responder a esta pergunta (ver Leitura sugerida #1). Crianças no primeiro ano de escolaridade, da Islândia a norte à Grécia a sul, e de Portugal a oeste à Finlândia a leste, ao todo com 13 línguas diferentes, foram testadas quanto ao conhecimento das letras e na leitura de palavras familiares e de palavras inventadas. Exemplos de palavras familiares usadas em português foram “ali, tu, pé, uva, gato, porta”; em espanhol, “tan, pero, sol, casa, niño, estoy”; em inglês, “my, here, boy, two, home, blue”. As listas em cada língua eram mais extensas, estas são apenas uma pequena amostra.
O estudo mostrou que a percentagem de palavras corretamente lidas no final do primeiro ano de escolaridade era muito diferente conforme as línguas que estavam a ser aprendidas. Crianças a aprender línguas mais regulares como o finlandês, o espanhol e o alemão quase não tiveram erros de leitura (apenas 2 a 6% de erros). Em contrapartida, as que aprendiam línguas de ortografia menos regular tiveram uma taxa de sucesso bem mais baixa. O caso extremo foi o das crianças a aprender inglês, uma língua conhecida pela sua elevada inconsistência: a percentagem de erros foi superior a 50%. A meio caminho ficaram as crianças francesas e portuguesas, duas ortografias que também estão a meio caminho quanto à regularidade/irregularidade, isto é, que não são tão regulares como o espanhol, nem tão irregulares como o inglês; a percentagem de erros, nestes casos, foi de cerca de 25%.
A principal conclusão deste estudo é que o ritmo de aprendizagem depende da língua em que se aprende, sendo que línguas contendo poucas ou nenhumas irregularidades podem ser aprendidas mais fácil e rapidamente do que línguas em que elas existem em maior número. Como é o caso do português.
Autoria: São Luís Castro Edição: Andreia Lobo
Publicação: 22.setembro.2020
Parece realmente mais complicado falar de inconsistências na leitura e inconsistências na escrita, em vez de simplesmente considerar que há palavras irregulares. Mas esta distinção é útil porque tem em conta uma diferença que existe na ortografia do português: são claras as regras que determinam como se lê, mas algumas dessas regras não servem para determinar como se escreve.
Os exemplos dados sobre a letra <s> e a sequência <ge> ou <gi> demonstram isso mesmo: embora o <s> entre vogais se leia sempre /z/, já o som/fonema /z/ entre vogais se pode escrever com <s> ou com <z>. E também, embora as sequências <ge> e <gi> se leiam sempre /je/ e /ji/, já estas sílabas tanto podem ser escritas com “g” como com jota, dependendo da palavra (“gema”, “jeito”).
Este conhecimento específico, separando leitura de escrita, serve para definir estratégias úteis para a criança que está a aprender, dando-lhe meios de resolver hesitações ou dúvidas de modo ordenado. No exemplo dado, se está a ler, há ‘truques’ que pode aplicar (recorre à regra). Se está a escrever, pode tentar lembrar-se da última vez que viu a palavra escrita; aqui o ‘truque’ é procurar na memória, não é usar a regra da leitura.
Numa fase de aprendizagem em que a criança tem ainda um conhecimento frágil da ortografia, esse tipo de exercícios não é aconselhável. Juntar grafias diferentes num mesmo momento de aprendizagem pode contribuir para aumentar a confusão, em vez de fortalecer traços mnésicos relativos à ortografia de cada uma das palavras. É preferível fazer exercícios com cada palavra em separado, ou grupos de palavras que sejam semelhantes. A escolha de conjuntos de palavras consistentes, tanto para os exercícios de leitura como para os de escrita, é facilitada recorrendo a bases de dados lexicais como, por exemplo, o PORLEX (ver mais informações aqui). Por exemplo, a propósito de “gema”, fazer jogos de associação semântica (“gosto/não gosto”, “sabem bem/mal”, “que cor têm, como se sentem ao tato”, “para que servem as gemas de ovos”, etc.) seguidos da escrita pela criança de duas, três frases ou mais, dependendo da idade ou nível de aprendizagem, usando a palavra “gema”.
Caravolas, M., Lervåg, A., Defior, S., Seidlová Málková, G., & Hulme, C. (2013). Different patterns, but equivalent predictors, of growth in reading in consistent and inconsistent orthographies. Psychological Science, 24(8), 1398–1407. http://doi.org/10.1177/0956797612473122
Morais, J. (2012). Criar Leitores. O ensino da leitura - para professores e encarregados de educação. Porto: Livpsic.
Seymour, P. H. K., Aro, M., & Erskine, J. M. (2003). Foundation literacy acquisition in European orthographies. British Journal of Psychology (London, England: 1953), 94(Pt 2), 143-174. http://doi.org/10.1348/000712603321661859
O princípio alfabético é o mecanismo de funcionamento dos sistemas de escrita alfabética. De acordo com este princípio, cada fonema é representado por um grafema. Compreender o funcionamento do princípio alfabético é a chave da aprendizagem da leitura e da escrita. O princípio alfabético é a base da decodificação/codificação, assim como a da aprendizagem do código ortográfico.
A tomada de consciência dos fonemas envolve a compreensão de que os fonemas são partes na constituição das sílabas e, portanto, na constituição das palavras. A consciência dos fonemas desenvolve-se como consequência de um ensino explícito, habitualmente o ensino das letras aplicado a tarefas de leitura e/ou escrita, e é essencial para aprender a ler num sistema de escrita alfabética, como o nosso.
No desenvolvimento da literacia, leitura e escrita podem manter entre si várias relações sinergéticas. Ensinar uma favorece a outra e ensinar as duas favorece ambas. Os currículos escolares devem, de um modo coerente, integrado e equilibrado, contemplar o ensino da leitura e da escrita.