Preparar A Ciência Mostra

Desenvolver a consciência fonológica, em particular a consciência fonémica

Desenvolver nas crianças em idade pré-escolar habilidades para lidar conscientemente com os constituintes fonológicos da fala ajuda-as a familiarizar-se com a ideia de que as palavras são compostas por “bocadinhos de sons”. Esta noção será útil mais tarde, quando tiverem de aprender que as letras servem para representar os segmentos mais pequenos da fala, os fonemas.

1. Consciência fonológica e consciência fonémica

A consciência fonológica refere-se à capacidade de um indivíduo prestar atenção às unidades fonológicas da linguagem e eventualmente efetuar transformações nelas. Neste caso, fala-se de habilidades metafonológicas. Estas unidades vão da sílaba ao fonema. As sílabas podem ser separadas fisicamente, por exemplo, “for-mi-dá-vel” (quatro sílabas), “com-par-ti-men-ta-ção” (seis sílabas), e é possível dizê-las, por exemplo, na ordem inversa e sem as modificar, embora seja difícil: “ção-ta-men-ti-par-com”. 

Numa sílaba como, por exemplo, “três”, há duas componentes: o ataque (antes da vogal, há o que se chama um ataque complexo, “tr-”, difícil de pronunciar sem vogal ulterior) e a rima (a partir da vogal: “ês”). No caso da palavra “três”, tanto no ataque como na rima há dois fonemas (no Alfabeto Fonético Internacional: /t/, /r/ - /e/, /ʃ/). “Três” é uma sílaba com quatro fonemas.

A consciência fonémica refere-se à consciência de que as consoantes são fonemas, unidades abstratas. É uma forma de consciência fonológica que resulta do facto de a escrita alfabética representar separadamente as consoantes e as vogais. Ao contrário do que acontece com as vogais, é muito difícil pronunciar isoladamente as consoantes. Porquê? As consoantes são as unidades que “vão com (acompanham) as soantes”, isto é, as vogais.

A escrita alfabética não é necessária para termos consciência das vogais, pela simples razão que todas as vogais podem ser pronunciadas separadamente, tal como as sílabas. Mas é ela que suscita a consciência das consoantes, e, por conseguinte, também das vogais, como unidades elementares e abstratas da fala, representáveis e combináveis. É a estas unidades que chamamos fonemas. 

É muito importante distinguir entre consciência fonológica e consciência fonémica ou dos fonemas. Algumas formas de consciência fonológica (como a das sílabas e das vogais isoladas) são acessíveis por introspeção e não exigem a aprendizagem de uma escrita alfabética. A consciência fonémica é alcançada geralmente quando temos de trabalhar com esse tipo de escrita, e ela emerge e desenvolve-se precisamente porque a escrita alfabética representa as unidades fonológicas mínimas e abstratas a que chamamos fonemas. A aprendizagem da escrita alfabética e a aquisição da capacidade de representação mental dos fonemas interagem reciprocamente, cada uma contribui para a outra. 

Muitas pessoas, incluindo alguns autores de trabalhos sobre estas questões, confundem consciência fonológica com consciência fonémica, mas é muito importante distingui-las. 

A consciência fonológica engloba todos os níveis da estrutura dos sons que constituem a fala: por exemplo, consciência da rima, consciência silábica, consciência fonémica, entre outros. 

A consciência fonémica é apenas um tipo, uma subcategoria da consciência fonológica e envolve especificamente a identificação e manipulação dos fonemas, isto é, dos segmentos indivisíveis de som da fala. É justamente esta forma de consciência que é preciso desenvolver durante a alfabetização e que tem um papel crucial na aquisição inicial da leitura e da escrita no sistema alfabético.  


2. A importância da consciência fonológica e da consciência fonémica  

Quando usamos linguagem, e quando as crianças usam linguagem, estamos concentrados nos significados e não temos consciência de que as palavras são formadas por fonemas. Quer dizer, não estamos a controlar os fonemas que precisamos usar para comunicar oralmente, simplesmente produzimos uma mensagem ou entendemos, na maior parte das vezes sem esforço, a mensagem que nos é dirigida. Falar e compreender linguagem são capacidades intuitivas de comunicação.

De forma muito diferente, para aprender a ler e a escrever é essencial ser capaz de focar intencionalmente a atenção na estrutura fonológica da fala e identificar os fonemas que constituem as sílabas e as palavras, porque o sistema de escrita alfabético é um código que faz corresponder os fonemas aos grafemas. Para cada fonema de uma palavra existe um grafema que o representa e vice-versa. É por isso que quem sabe ler consegue decodificar e codificar qualquer palavra inventada. Ou seja, consegue pronunciar uma sequência de grafemas que veja pela primeira vez e escrever uma sequência nova de fonemas.  Por exemplo, “trubinha” não levantará dificuldades de leitura nem de escrita a um leitor mediano. 

No entanto, como uma grande parte dos fonemas, as consoantes não correspondem a sons isolados, mas sim a ideias que formamos sobre os sons da fala. Focar a atenção em fonemas e identificá-los é uma tarefa difícil para quem está a começar a aprender a ler e a escrever. Por exemplo, separar /d/ de /da/ exige a noção de que existe um segmento antes de /a/ que é difícil conceber e pronunciar isoladamente sem antes ter sido ensinado. É indispensável ensinar a identificar os fonemas nas palavras. Se esse trabalho não for feito, as crianças podem ler algumas sílabas sem terem entendido a função das letras e a ideia de que as palavras são compostas por fonemas. Por isso, deve-se suscitar nas crianças aprendizes da escrita alfabética um esforço consciente de análise das sílabas em fonemas.

Quem ensina deve assegurar-se de que elas são capazes de isolar as sílabas e até realizar operações sobre elas, por exemplo inverter a sua posição, como, por exemplo, dizer “dudê” (/dude/, no Alfabeto Fonético Internacional) em resposta à palavra “dedo”.

Depois trata-se de analisar conscientemente cada sílaba nos seus fonemas. Uma operação possível é a subtração da consoante, por exemplo dizer /u/ em resposta a /pu/; outra, que exige uma representação mais precisa de cada fonema, a troca de consoante e vogal, por exemplo dizer /pu/ e /ga/ em resposta a /pa/ e /gu/. 

À medida que aprendem a ler e a escrever sílabas e palavras alfabeticamente, as crianças tornam-se capazes de representar os fonemas isoladamente e de realizar operações mentais como estas, sobretudo a de inversão. 

A alfabetização não é indispensável para que as crianças adquiram uma consciência da rima que lhes permita, por exemplo, manter a rima trocando o ataque (por exemplo, “traça – praça”) ou a parte de palavra que o contém (“menino – pequenino”). Elas, tal como os poetas iletrados, fazem isso sem realizarem uma análise consciente das palavras nessas unidades, isto é, elas não isolam o ataque. A sensibilidade à rima pode e deve ser aproveitada antes da alfabetização para desenvolver na criança a sensibilidade às sonoridades da fala.

Antes de aprender formalmente a ler, e antes de aprender a lidar com fonemas, é importante que as crianças aprendam a pensar sobre a dimensão fonológica da linguagem – a estrutura dos sons da fala – e sejam capazes de identificar, produzir e manipular sílabas e rimas.

Desenvolver nas crianças em idade pré-escolar habilidades para lidar conscientemente com os constituintes fonológicos mais acessíveis da fala – sílabas e rimas – ajuda-as a familiarizar-se com a ideia de que as palavras são compostas por “bocadinhos de sons”. E isso, por sua vez, em conjunto com o conhecimento de letras, vai ajudá-las a compreender a ideia de que esses “bocadinhos de sons” podem ser divididos em segmentos mais pequenos, os fonemas, que correspondem a letras, os grafemas.

No início do 1.º ano é importante que os professores se certifiquem de que todas as crianças são capazes de realizar operações com sílabas e rimas, para depois começarem o trabalho da análise das sílabas em fonemas.


3. A ciência mostra 

A investigação mostra de modo consistente que a maioria das crianças aprende a identificar, produzir e manipular rimas e sílabas com relativa facilidade, antes do ensino da leitura num sistema de escrita alfabético.

No que concerne à relação entre as habilidades para lidar com essas estruturas fonológicas mais acessíveis e a aprendizagem da leitura, o quadro é complexo, pois: 

    a) as evidências são inconsistentes – muitos estudos não observaram essa relação mas outros sim, inclusive para a língua portuguesa;
    b) quando observada, o grau de associação é frágil – associações significativas entre este tipo de habilidades metafonológicas e os desempenhos em leitura são frequentemente de fraca magnitude;
    c) quando se verifica essa associação, ela não é independente das habilidades metafonológicas mais abstratas - o efeito da consciência da rima na aprendizagem da leitura não é independente do nível de consciência dos fonemas que as crianças têm;
    d) estudos que compararam o peso das habilidades metafonológicas relativas a sílabas e rimas com o peso da consciência fonémica na aprendizagem da leitura mostraram consistentemente que a consciência fonémica era o fator que melhor explicava as diferenças individuais em leitura.

Além disso, mesmo quando uma criança tem níveis elevados de consciência da rima e da sílaba, há estudos que provam que isso não funciona automaticamente como um trampolim ou uma ponte para a tomada de consciência dos fonemas. Existe, portanto, uma descontinuidade entre as habilidades metafonológicas relativas a unidades amplas (rima e sílaba) e a emergência da tomada de consciência dos fonemas. 

Embora a investigação mostre que as habilidades metafonológicas emergem pelas unidades mais acessíveis, mostra também que a trajetória do desenvolvimento não é linear, pois não vai culminar na tomada de consciência dos fonemas se não houver um exercício específico para que as crianças consigam lidar com fonemas. Esse exercício é a aprendizagem da leitura e da escrita através de métodos que ensinem explicitamente a análise das palavras em fonemas e, ao mesmo tempo, as correspondências entre fonemas e grafemas.

Autoria: Ana Paula Vale          Edição: Andreia Lobo

Publicação: 22.setembro.2020

Recomendações

Perguntas Frequentes

Devo ensinar consciência fonológica em grande grupo, em pequeno grupo ou individualmente?

O ensino da consciência fonológica pode ser realizado utilizando todas essas formas de organização das crianças e todas elas deveriam acontecer. O critério-chave é que todas as crianças tenham oportunidade de experimentar, concretizar, pensar sobre as atividades que estão a acontecer. 

Se as atividades metafonológicas forem realizadas apenas em grande grupo, algumas crianças não vão ter a oportunidade de experimentar o que acontece quando se pensa e trabalha com sons de fala. Muito provavelmente, também haverá uma ou outra criança que precisa de um tempo de trabalho individual. Se tal se verificar, é crucial que essas crianças tenham oportunidade de fazer esse trabalho individual, porque esse treino vai ajudar muito os seus ganhos nestas matérias. Trabalhar em pequeno grupo – até seis crianças – deveria ser o formato mais rotineiro para realizar este trabalho.

Por que razão algumas crianças falam bem mas têm dificuldade em fazer jogos metafonológicos?

As capacidades para usar linguagem oral não exigem um esforço consciente para atender aos sons da fala, e manipulá-los; ao contrário, realizar tarefas metafonológicas depende das capacidades da criança para focar a sua atenção nos sons, compará-los, diferenciá-los e identificá-los.

Muitas das crianças que têm dificuldades em realizar tarefas metafonológicas provavelmente também têm algumas fragilidades relativamente à qualidade (especificação, diferenciação) das representações dos sons da fala que têm armazenados na sua memória fonológica. No entanto, essas fragilidades são tão subtis que dificilmente perturbam o uso da linguagem para comunicar.

Devo ou não trabalhar consciência fonémica no jardim de infância?

Na fase pré-escolar, particularmente nos grupos de cinco anos, em muitos jardins de infância, as crianças escrevem os seus nomes e as Educadoras colocam rótulos escritos em várias peças da sala. Não há nenhuma investigação que mostre ser prejudicial ensinar às crianças algumas das letras iniciais dessas palavras e levá-las a tomar consciência dos seus sons/fonemas. Ou seja, preparar o caminho para a consciência dos fonemas. Pelo contrário, há muitos estudos que mostram ser útil iniciar essas aprendizagens antes do ensino formal da leitura.

Nessa linha, jogar com fantoches também produz habitualmente muito sucesso. Um fantoche pode falar de uma maneira peculiar; por exemplo, sílaba a sílaba, ou a arrastar uma determinada estrutura alvo que se quer trabalhar: “rrrrrato, rrrrrua, rrrrrima”; “ffffffigo, fffffava, etc.”.

Depois pode-se pedir às crianças que imitem o fantoche ou identifiquem “o pedacinho de som” que ele produz de forma “engraçada e esquisita”, mostrando também a letra.

Associar o conhecimento de algumas letras e os seus “sons” a palavras escritas não é ensinar a ler, mas prepara para essa aprendizagem; é útil, pois facilita-a. Além disso, fazer este tipo de trabalho no jardim de infância permite assinalar, em tempo particularmente útil, crianças em risco de insucesso, pois aquelas que são lentas a manifestar ganhos e são resistentes às oportunidades de aprendizagem são as que poderão falhar na aprendizagem da leitura.

Fonemas e letras são a mesma coisa?

Não. Fonemas são as unidades mínimas, abstratas, da sequência fonológica que constitui uma palavra. Um fonema é um conceito que representamos na nossa mente. A letra é uma unidade do sistema ortográfico. Tem uma realidade física, vê-se. As letras têm nomes e representam fonemas. Por exemplo, a letra “pê” representa o fonema /p/; a letra “ó” representa vários fonemas: /ɔ/, como em “bota”; /o/, como em “gota”; /u/, como em “bonita”.

LEITURAS SUGERIDAS

Cardoso – Martins, C. (1995). Sensitivity to rhymes, syllables, and phonemes in literacy acquisition in Portuguese. Reading Research Quarterly, 30 (4), 808-827

Cary, L., & Verhaeghe, A. (1994). Promoting phonemic analysis ability among kindergartners: Effects of different training programs. Reading and Writing: An Interdisciplinary Journal, 6, 251–278

Freitas, M.J., Alves, D. & Costa, T. (2007). O conhecimento da língua: desenvolver a consciência fonológica. Lisboa. Ministério da Educação.

Melby-Lervåg, M., Lyster, S. A. H., & Hulme, C. (2012). Phonological skills and their role in learning to read: A meta-analytic review. Psychological Bulletin, 138, 322–352. doi:10.1037/a0026744

Sargiani, R., Ehri, L., & Maluf, M. (2018). Orthographic mapping instruction to facilitate reading and spelling in Brazilian emergent readers. Applied Psycholinguistics, 39(6), 1405-1437. doi:10.1017/S0142716418000371

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