As características fonológicas da língua podem facilitar ou, ao contrário, constituir dificuldade para aprender a ler e a escrever. Entre as capacidades precoces do bebé relativas à fala e as representações fonológicas das sílabas e fonemas da língua materna, há um percurso que se estende por vários anos. Este percurso é em parte inerente ao desenvolvimento da criança, mas também depende das experiências com a linguagem.
1. Características fonológicas da língua
A Fonologia é o estudo das características fonológicas da língua. Estas características referem-se à maneira como os fones, ou unidades fonéticas (estudadas pela Fonética), são distribuídos por categorias fonológicas. Os fones são unidades percetivas: por exemplo, se prestarmos bem atenção, o “r” de “carta”, pelo facto de preceder uma consoante, soa mais rolado que o “r” da cara, mas esta diferença não é relevante para o significado da palavra. Assim, o “r” de “cara e o “r” de carta” são dois fones porque são foneticamente diferentes, mas não se distinguem fonologicamente, pertencem à mesma categoria fonológica, neste caso, o mesmo fonema.
Em Portugal, segundo a região, pode pronunciar-se as mesmas palavras de modo diferente. Notamos essas diferenças, são diferenças fonéticas, mas não fonológicas. Como não mudam o significado da palavra, escrevem-se da mesma maneira. Quando a diferença é fonética, mas não fonológica, ela tende a passar despercebida. Mas nunca confundimos “caro” e “carro”, porque a diferença não é só fonética, ela é também fonémica. Em “caro” temos, portanto, uma unidade fonológica, um fonema, que designamos por /r/ e em “carro”, outro fonema, que designamos por /R/.
A voz humana é dotada de uma extraordinária versatilidade. Os sons que com ela podemos produzir são muito mais diversos do que os sons que usamos para falar. Pensemos, por exemplo, nos imitadores de vozes de animais, nos beat-boxers e nos cantores. Mas, mesmo se nos cingirmos à fala, deixando de lado vocalizações expressivas como as exclamações de surpresa, dor, ou alegria, os sons que a voz humana consegue produzir não são todos usados numa determinada língua. É como se cada língua tivesse os seus sons preferidos, e se concentrasse apenas neles e nas suas variações próximas para constituir palavras.
Os sons, ou melhor, fones, usados por cada língua constituem o seu inventário fonético. Por exemplo, do inventário fonético do português fazem parte os sons /l/ e /lh/ como em “leve” e “folha”, mas não o som que se usa em espanhol ou em alemão nas palavras “jamón” e “lachen” (é o /?/, que soa parecido com /x/).
Além dos fones considerados individualmente, as línguas têm também maneiras preferidas de os combinar em sílabas. Se o alfabeto não tivesse sido inventado, diríamos hoje que as sílabas constituem sons, e com razão: para dizermos “vida nossa” abrimos a boca a cada sílaba e fechamo-la logo depois. “Vi-da” na primeira palavra, “no-ssa” na segunda. As sílabas podem ter estruturas silábicas diferentes: uma sílaba pode ser constituída só por uma vogal (V), por uma consoante seguida de vogal (CV), ou ter uma estrutura complexa (CCV ou CVC, por exemplo). Há línguas onde o modo preferido é o das sílabas mais simples de tipo CV ou V, e outras que acolhem proporcionalmente mais sílabas complexas.
As línguas também variam quanto ao modo como algumas sílabas são, ou não, mais proeminentes do que outras. Podem marcar muito a sílaba acentuada (mais longa, mais forte, melhor articulada) relativamente às outras, ou pode não haver uma diferença sonora muito forte entre as sílabas acentuadas e as não-acentuadas. Este aspeto é o do ritmo das línguas.
Línguas como o francês ou o italiano, que soam melodiosas e regulares, têm um ritmo baseado na sílaba. Outras, como o inglês ou o alemão, em que as sílabas acentuadas sobressaem, têm um ritmo baseado no acento. Nestas, as sílabas não-acentuadas são produzidas com menos intensidade, menor duração ou mais indistintamente. Isto acontece particularmente com as vogais pois, regra geral, as consoantes são sempre relativamente curtas, um fenómeno conhecido por redução vocálica.
Na nossa língua, sobretudo o falado em Lisboa pelas elites, a redução vocálica é muito forte: quando dizemos a palavra “degenerar”, quem não conhece a nossa língua tem a impressão de ouvir uma sequência de consoantes incompreensível (nem sequer é “dgnrsç”), antes de perceber que a palavra termina em -ar. A palavra é percebida porque é a nossa língua, além de que somos ajudados pelo conhecimento da sua ortografia.
2. A importância das características fonológicas da língua para a aprendizagem da leitura e da escrita
As características fonológicas da língua podem facilitar ou, pelo contrário, constituir dificuldade para aprender a ler e a escrever.
Línguas que contenham maioritariamente sílabas simples e terminadas em vogal (chamadas sílabas abertas) prestam-se mais facilmente ao desenvolvimento da consciência fonológica, que, por sua vez, ajuda à aprendizagem da linguagem escrita. Percebendo claramente as sílabas “pé” e “lé” (/pé/ e /lé/) em “Pelé”, é preciso menos esforço para notar que ambas terminam na vogal /é/, que é antecedida ora por /p/ ora por /l/; e, estando estas unidades percebidas, mais fácil se torna fazê-las corresponder às letras com que são escritas.
O contrário acontece nas línguas onde é mais forte a presença de redução vocálica e de sílabas complexas terminadas em consoante (sílabas fechadas). Quer a estrutura silábica, quer a redução vocálica, fazem com que a fonologia da língua seja menos transparente. Isto obrigará a um maior esforço para tomar consciência da sequência dos sons das palavras e, consequentemente, também a um maior esforço para estabelecer as relações entre sons e letras, ou entre fala e escrita, que são necessárias para ser capaz de ler e escrever.
No português falado em Portugal, há muita redução vocálica. Isso não acontece no português do Brasil, razão por que é mais fácil a um estrangeiro perceber o português do Brasil do que o português de Portugal. Quando coloquialmente se diz que os portugueses “comem as palavras”, a culpada é a redução vocálica. As sílabas não-acentuadas de uma palavra ou frase quase desaparecem da onda sonora, onde se destacam apenas as sílabas acentuadas. Um exemplo pode ser visto na Figura B.
A Figura B mostra um sonograma, ou seja, a representação gráfica da onda sonora, de uma palavra com duas sílabas: “bala”. Contudo, na onda acústica, o que tem energia é apenas a primeira parte, que corresponde à sílaba acentuada, /bá/; a segunda parte parece ruído, mas na verdade é a segunda sílaba não-acentuada, /la/. É fácil entender que este elevado grau de redução vocálica pode dificultar a identificação das sílabas, e a partir daí dificultar também as restantes operações cognitivas envolvidas na leitura e escrita.
3. A ciência mostra
A linguagem falada faz parte do mundo do bebé desde o primeiro momento. Recorrendo a técnicas experimentais sofisticadas, a partir dos anos 70 fizeram-se inúmeros estudos sobre a perceção de fala em bebés. Os resultados destes estudos mostraram inequivocamente que, desde os primeiros dias de vida, os bebés têm uma extraordinária sensibilidade para a voz e a fala.
Por exemplo, são capazes de reconhecer a voz da mãe pelas 12 horas de vida, e de perceber a diferença entre /p/ e /b/ (contraste de vozeamento) ou entre /b/ e /t/ (contraste de lugar) com um mês de vida. São também sensíveis ao ritmo das línguas. Com apenas cinco dias de vida, os bebés são capazes de diferenciar o italiano e o espanhol, ambos de ritmo baseado na sílaba, do inglês e do holandês, ambos de ritmo baseado no acento. Estas finas capacidades percetivas observam-se ao nível da atividade cerebral ou de comportamentos simples como a sucção de uma chupeta ou virar a cabeça. E, ao longo do primeiro ano de vida, vão sendo moldadas pela língua materna, ou seja, ajustam-se às características fonológicas da língua materna.
As capacidades percetivas precoces são importantes para o desenvolvimento da linguagem nos anos a seguir. No entanto, a investigação também mostrou que elas não são suficientes para que haja consciência fonológica. Ser capaz de perceber a diferença entre /p/ e /b/ ao nível da atividade cerebral ou do comportamento de sucção, por exemplo, não implica ser capaz de identificar estes sons na cadeia de fala, nem é o mesmo que ‘saber’, em sentido mais abstrato, que são sons da fala em qualquer situação.
Entre as capacidades percetivas relativas à fala e as representações fonológicas relativas às sílabas e fonemas da língua materna, há um percurso de desenvolvimento e aprendizagem que se estende por vários anos em idade pré-escolar e início da idade escolar. Este percurso designa-se, de modo geral, como desenvolvimento fonológico. O desenvolvimento fonológico é, em parte, inerente à aquisição da linguagem, mas depende também das experiências com a linguagem que o podem favorecer.
Autoria: São Luís Castro Edição: Andreia Lobo
Publicação: 22.setembro.2020
A linguagem falada é como um alicerce da linguagem escrita. Conhecer várias palavras, apreciar a força expressiva da fala, ser capaz de se expressar oralmente são aspetos que por si só não conduzem ao domínio da leitura e da escrita, mas que ajudam a que essa nova aprendizagem se faça com sucesso.
Sim, porque é uma maneira de reforçar o conhecimento que a criança tem, ou vai ter, dessa palavra. Não só para eventualmente ficar a conhecer uma palavra nova, no sentido de saber que existe essa palavra, e ter uma ideia do seu significado, mas também para exercitar a articulação no caso de estruturas silábicas mais complexas. E também para ganhar confiança em falar com boa dicção e talvez despertar o seu gosto pela linguagem.
Castro, S. L., & Gomes, I. (2000). Dificuldades de aprendizagem da língua materna. Lisboa: Universidade Aberta. (Capítulo 2, Dificuldades de linguagem falada)
Duncan, L. G., Castro, S. L., Defior, S., Seymour, P. H. K., Baillie, S., Leybaert, J., et al. (2013). Phonological development in relation to native language and literacy: Variations on a theme in six alphabetic orthographies. In Cognition, 127(3), 398–419. http://doi.org/10.1016/j.cognition.2013.02.009
Maurer, D. & Werker, J. F. (2014). Perceptual narrowing during infancy: a comparison of language and faces. Developmental Psychobiology, 56(2), 154–178. http://doi.org/10.1002/dev.21177
Moutinho, L. (2000). Uma introdução ao estudo da fonética e fonologia do português. Lisboa: Plátano Edições Técnicas.
A aprendizagem da leitura/escrita implica a aprendizagem de um sistema de signos gráficos que representam a fala e o desenvolvimento de conhecimentos e habilidades que possibilitem a compreensão do que se lê e a capacidade de expressão através da escrita. Por isso, o sucesso nesta aprendizagem é influenciado pela condição em que cada criança se encontra quando inicia a escolaridade, em particular pelo seu desenvolvimento linguístico e pelo contacto prévio que teve com a escrita.
Desenvolver nas crianças em idade pré-escolar habilidades para lidar conscientemente com os constituintes fonológicos da fala ajuda-as a familiarizar-se com a ideia de que as palavras são compostas por “bocadinhos de sons”. Esta noção será útil mais tarde, quando tiverem de aprender que as letras servem para representar os segmentos mais pequenos da fala, os fonemas.
A tomada de consciência dos fonemas envolve a compreensão de que os fonemas são partes na constituição das sílabas e, portanto, na constituição das palavras. A consciência dos fonemas desenvolve-se como consequência de um ensino explícito, habitualmente o ensino das letras aplicado a tarefas de leitura e/ou escrita, e é essencial para aprender a ler num sistema de escrita alfabética, como o nosso.