O léxico das línguas naturais é uma entidade dinâmica, que pode sempre receber novas unidades. Há várias maneiras de juntar novas palavras ao conjunto das palavras já atestadas. Uma dessas maneiras consiste em produzir novas combinações a partir dos constituintes morfológicos (radicais e afixos) que integram palavras existentes. O conhecimento dos processos morfológicos de formação de palavras é deduzido a partir do conjunto de palavras que os falantes conhecem. Esse conhecimento facilita o processamento lexical, podendo auxiliar os processos de leitura e escrita.
1. Formação de palavras
No português os processos morfológicos de formação de palavras podem fazer uso da concatenação de um afixo e uma base (radical, tema ou palavra), ou da concatenação de radicais ou palavras. Os primeiros são processos de afixação. Os segundos são processos de composição.
Há dois tipos de processos de afixação:
(i) a derivação, que dá origem a uma palavra distinta (cf. eucalipt(o) -> eucaliptizar);
(ii) a modificação, que altera semanticamente uma palavra já existente (cf. eucalipto -> eucaliptozinho).
A derivação conta apenas com sufixos, distribuindo-se por diferentes subclasses morfossintáticossemânticas (cf. substantivos agentivos deverbais são substantivos derivados de formas verbais e que têm uma natureza agentiva, como treinador).
A modificação conta com vários tipos morfossemânticos de prefixos (cf. prefixos de negação, como in-, em incapaz, ou prefixos de repetição, como re-, em refazer) e com um tipo de sufixos, os avaliativos, que se subdividem em dois grupos, de acordo com a base a que se associam (cf. -inho associa-se a radicais, como em dedinho, e -zinho associa-se a palavras, como em ideiazinha).
No domínio da composição, há três tipos a considerar. A composição morfológica consiste na concatenação de um radical a um outro radical (quando nenhum deles ocorre em palavras simples do Português, como em [omn]í[vor]o); ou de um radical de qualquer tipo ao radical de uma palavra simples, derivada ou até composta (cf. [agr]o[turism]o, [toxic]o[dependent]e, [hort]o[[frut]i[cultur]]a).
Os compostos morfológicos podem ter uma estrutura de modificação, em que o primeiro elemento altera o valor semântico do segundo (cf. hidroterapia é um tipo de terapia), ou uma estrutura de coordenação, sendo o significado cumulativamente produzido pelos dois constituintes (cf. luso-francês).
A composição morfossintática corresponde à formação de uma palavra a partir de sequências que têm uma natureza sintagmática. Estas estruturas podem corresponder à modificação da primeira palavra (cf. homem-rã é um tipo de homem; mulher-elástico é um tipo de mulher), à coordenação das duas palavras (cf. cão-lobo é um animal resultante do cruzamento de um cão doméstico com um lobo), ou ainda à nominalização de uma predicação verbal (cf. afia-lápis é um instrumento que afia lápis).
A composição sintática é um processo de lexicalização de estruturas sintagmáticas que ganharam um significado diferente do significado literal (cf. brincos de princesa não são brincos e não têm nada a ver com qualquer princesa, são o nome de uma flor). Estes compostos não são palavras, são expressões sintáticas.
2. A importância da formação de palavras para o desenvolvimento linguístico e para a aprendizagem da leitura
O conhecimento dos processos de formação de palavras é desenvolvido durante toda a vida dos falantes e passa por fases distintas. Uma dessas fases é desencadeada pelo domínio da leitura, que permite expandir de forma muito significativa o conjunto de estímulos a que os falantes têm acesso. Provavelmente, este conhecimento está correlacionado com a aprendizagem de um número de palavras que permita construir uma hipótese sobre as suas propriedades.
Exemplo:
Palavras como falador, jogador, vendedor, sonhador, que as crianças devem conhecer desde cedo, permitem-lhes deduzir que a terminação em -dor ocorre em formas agentivas que controlam o processo referido pela base verbal e aplicar esse conhecimento, quer na interpretação de formas que escutem pela primeira vez (cf. examinador), quer na formação autónoma de palavras que poderão ou não vir a ser sancionadas pelo uso dos falantes (cf. escrevedor vs escritor).
Muito provavelmente, o peso do léxico reconhecido como existente e até lexicografado vai aumentando com o tempo e a escolarização, podendo colocar-se a hipótese de que a geração de palavras nunca ouvidas ou lidas é inversamente proporcional à expansão do conhecimento lexical.
O desenvolvimento do conhecimento dos processos morfológicos não ocorre sempre ao mesmo ritmo.
Exemplo:
A familiarização com os processos de sufixação avaliativa, centrados sobretudo no uso do diminutivo -inho/a (cf. soninho, carinha, aguinha), precede o contacto com os outros processos de afixação e ambos precedem o conhecimento dos processos de composição. A compreensão e uso dos diminutivos treina o processamento morfológico e faz pouco uso da lexicalização.
Nos outros casos de afixação e nos casos de composição, o requisito é exatamente o oposto, ou seja, a aprendizagem e memorização das palavras, uma a uma, assumem um papel central, tanto no conhecimento das palavras como na dedução dos processos morfológicos.
Os contrastes acima referidos sugerem que o papel da consciência dos processos morfológicos de formação de palavras complexos na aprendizagem da leitura é diverso. Considerando que a frequência dos diminutivos no registo escrito é bastante baixa, é provável que esse conhecimento seja pouco relevante para a leitura ou a escrita.
No caso dos restantes processos, é possível que a relevância do conhecimento dos processos cresça a par da maturação do sistema linguístico dos falantes e que a sua explicitação facilite a resolução de hesitações ortográficas (cf. substantivos em -ez, como rapidez. vs adjetivos em -ês, como francês, ou verbos prefixados por es-, como esvaziar, vs. substantivos prefixados por ex-, como ex-colega).
3. A ciência mostra
Diversos trabalhos têm vindo a sugerir que a consciência morfológica desenvolvida no curso do processo de aquisição e desenvolvimento linguístico pode facilitar o sucesso na aprendizagem e desenvolvimento da leitura e da escrita. No entanto, a investigação nestes domínios, e sobretudo no que diz respeito ao português, é ainda bastante incipiente.
No campo da investigação sobre processamento de palavras complexas, há trabalhos dedicados a processos de derivação e trabalhos dedicados a processos de modificação, que têm vindo a desenvolver metodologias experimentais com o objetivo de isolar inequivocamente o papel das questões de natureza morfológica, sendo ainda muito necessário garantir um controlo mais rigoroso dos dados linguísticos testados e introduzir melhorias no desenho experimental.
Um dos fatores que deve ser tido em consideração é o da composicionalidade das palavras complexas. Um estudo recente concluiu que as estruturas composicionais (cf. venen-oso) têm um custo de processamento menor do que o das estruturas perturbadas por fatores como a alomorfia do sufixo (cf. venen-oso vs. lux-uoso) ou a alomorfia da base (cf. arei-a vs. aren-oso). A composicionalidade parece, portanto, ser um fator facilitador no acesso lexical.
Também não é fácil encontrar dados objetivos que comprovem que o grau de consciência morfológica está diretamente relacionado com o grau de proficiência na escrita, embora essa seja a convicção de muitos investigadores. É, no entanto, possível encontrar estudos que sugerem recursos para a rentabilização do conhecimento dos processos de formação de palavras para o desenvolvimento da proficiência ortográfica.
Autoria: Alina Villalva
Publicação: 19.janeiro.2024
Sim. A vida está constantemente a solicitar a criação de novas palavras. As novas palavras podem surgir de diversas origens. O léxico é frequentemente enriquecido por empréstimos de outras línguas (cf. briefing), por novos significados atribuídos a palavras já existentes (cf. grosso - 1. espesso, 2. mal-educado) e pelo recurso à gramática morfológica, através dos processos de afixação ou composição.
As palavras existem quando são ou foram usadas pelos falantes, o que nem sempre é fácil de determinar. Os dicionários são instrumentos importantes para verificar a atestação das palavras (para além de outras informações), mas nem todas as palavras usadas pelos falantes estão registadas em dicionários. Um outro instrumento importante para a verificação da atestação das palavras são os corpora lexicais (bases de dados de textos escritos ou de transcrições de interações verbais orais), mas também não é garantido que a não ocorrência das palavras nessas fontes comprove que a palavra não existe. Um terceiro recurso para avaliação da existência das palavras decorre do conhecimento dos processos de formação de palavras. Se a palavra pode resultar da intervenção de um processo de formação de palavras, então a palavra é possível e pode já ter sido ou vir a ser usada pelos falantes (cf. covidário). A existência das palavras depende, na verdade, de um acordo tácito entre o seu uso e a compreensão pelos falantes
Morais, A. G. (1998). Ortografia: ensinar e aprender. Ática.
Paula, F. V. (2002). Conhecimento metacognitivo de crianças de 3.ª série que apresentam dificuldades na aquisição da leitura. Instituto de Psicologia da Universidade de S. Paulo: Dissertação de Mestrado.
Viana, F. L., Silva, C. V., Santos, A. S., Vale, A. P, & Ribeiro, I. (2014). Prova de Consciência Morfológica (PCM): Contributos para a sua validação. Calidoscópio, 12(3), 335-344. https://doi.org/10.4013/cld.2014.123.08
Villalva, A. (2008). Morfologia do Português. Universidade Aberta.
Villalva, A. & Silvestre, J. P. (2015). Introdução ao Estudo do Léxico. Descrição e Análise do Léxico do Português. Editora Vozes.
A morfologia estuda palavras. As palavras são estruturas preenchidas por unidades lexicais menores (radicais e afixos) que se organizam e relacionam entre si de várias maneiras. Com base na descrição e análise de palavras de que há registo, a morfologia estuda também os processos de formação de novas palavras. O conhecimento das estruturas e dos processos morfológicos faz parte integrante do processo geral de conhecimento linguístico. A consciência morfológica, que vem da explicitação desse conhecimento, contribui para o sucesso da aprendizagem da leitura e da escrita.