A aprendizagem da leitura é facilitada pelo domínio que os aprendizes leitores têm da linguagem oral. À semelhança do conhecimento lexical, os conhecimentos morfológico e sintático devem, também, ser alvo de atenção particular por parte quer dos educadores de infância, quer dos professores.
1. Conhecimento morfológico e sintático
Quando se dá início ao processo de escolarização formal, o que ocorre geralmente no ano em que as crianças completam seis anos de idade, elas já revelam alguma mestria na utilização da linguagem com função comunicativa, usando-a para interagir verbalmente com os outros indivíduos. Esta competência é adquirida naturalmente, embora intrinsecamente ligada ao processo de socialização. Sem "lições de gramática", as crianças extraem e internalizam uma série de regras que orientam o seu desempenho linguístico. Este conhecimento da língua, que começa por ser implícito – daí denominar-se conhecimento epilinguístico, porque é intuitivo, derivado da prática linguística – vai ter implicações na aprendizagem da leitura.
Muitos dos "erros" cometidos pelas crianças revelam esta apropriação das regras, não sendo, por isso, erros. Quando uma criança de dois anos diz, por exemplo, "dois caracoles", esta produção mostra que já percebeu que o morfema <s> é o marcador mais comum dos plurais em português. Do mesmo modo, quando uma criança refere que as uvas nascem da "uveira", ou utiliza o prefixo des- para produzir "deslarga-me", esses comportamentos demonstram que compreendem, ainda que de modo implícito, o significado de prefixos e sufixos. O mesmo acontece com o uso de flexões relativas a género e a número.
Muitas crianças usam, bem precocemente, a linguagem para falar sobre ela, dizendo, por exemplo, "essas palavras rimam" ou "A D. Rosa fala diferente" (referindo-se ao sotaque de determinada pessoa), o que demonstra já atividade metalinguística. No entanto, é a aprendizagem da leitura e da escrita que contribui decisivamente para que a linguagem passe a ser objeto de conhecimento, exigindo que prestem atenção consciente a outros aspetos formais da linguagem – nível fonológico, morfológico e sintático – e não apenas ao conteúdo (nível semântico). Assim, ao longo da escolaridade e muito em função dela, o conhecimento da língua vai progredindo, ao longo de um continuum, do nível epilinguístico (intuitivo) para o nível metalinguístico (explícito).
A compreensão do princípio alfabético e das correspondências entre fonemas e grafemas exige que o aprendiz leitor preste atenção às sílabas e aos fonemas que constituem as palavras, daí a importância da consciência fonológica para a aprendizagem da leitura. O papel que a consciência fonológica desempenha na aprendizagem inicial da leitura tem relegado para plano secundário o papel do conhecimento morfológico e do conhecimento sintático. No entanto, como a investigação tem mostrado, a importância destes conhecimentos para a leitura não pode nem deve ser menosprezada. Eles são também facilitadores da aprendizagem da leitura e da escrita e devem ser alvo de atenção particular quer por parte dos educadores de infância, quer por parte dos professores.
2. Importância do conhecimento morfológico e sintático para a aprendizagem da vertente escrita da língua
O conhecimento morfológico refere-se aos processos de formação e de flexão das palavras. Há morfemas lexicais, que são portadores de informação semântica (também chamados lexemas ou radicais) e morfemas gramaticais, onde se incluem os afixos (derivacionais e flexionais).
Os afixos derivacionais participam nos processos de derivação (como in- de “infeliz”) e os afixos flexionais participam nos processos de flexão em género, número e pessoa (como o -s em "dedos", que indica o plural). A derivação tem uma função semântica. Os morfemas derivacionais dão origem a palavras com significados diferentes a partir de um mesmo radical (por exemplo: cereja + -eira). A flexão origina uma variação sintática devido à necessidade de concordância em género, número ou grau.
A morfologia funciona como um “elo de ligação” entre ortografia, fonologia e informação semântica, potenciando a qualidade das imagens mentais eliciadas pelas palavras e, consequentemente, a qualidade da leitura. O conhecimento morfológico apoia a grafia correta das palavras. O morfema /isɨ/ é ouvido em palavras como "tontice" e "fugisse". A tomada de decisão em relação à sua grafia correta nas palavras ou recorre à memorização, ou à informação morfológica. O morfema -ice dá origem a nomes derivados de adjetivos (tonto/tontice). O morfema -isse entra na constituição do pretérito de tempos verbais (fugir/fugisse).
O conhecimento sintático refere-se a conhecimento relativo à estrutura interna das frases, ou seja, à ordem pela qual as palavras podem ou devem ocorrer e às combinações entre palavras. O significado de uma frase não é igual ao somatório do significado de cada uma das palavras que a compõem, pelo que é preciso saber como as palavras se podem organizar em proposições e frases de modo a produzir sentido(s). No modo escrito, num nível claramente explícito, o conhecimento sintático inclui também o conhecimento sobre a pontuação.
A investigação tem mostrado que os conhecimentos morfológico e sintático têm repercussões quer na aprendizagem da decodificação, quer na compreensão da leitura. A utilização de pistas semânticas e sintáticas - complementadas com o conhecimento extratextual - pode ajudar à identificação de palavras que o aprendiz leitor não consegue ainda decodificar.
Tomemos o seguinte exemplo: na frase "Ele foi à missa na igreja" a palavra "igreja" pode não ser decodificada por um aprendiz leitor no segundo período letivo, atendendo a que o ensino da leitura de duas consoantes (diferentes) juntas é geralmente abordado no final do ano letivo. No entanto, pode ser inferida, permitindo, em consequência, a inferência da representação fonológica destas duas consoantes seguidas antes da vogal, dentro da sílaba.
A monitorização da compreensão exige que o leitor avalie a coesão dos aspetos sintáticos e semânticos do texto. Perante a frase escrita "A roupa seca ao sol fica mais fofa", é possível que um leitor hesite na articulação da palavra "seca", perguntando-se se se trata de uma forma do verbo secar ou de um adjetivo, com as variações de abertura das vogais representadas pela letra E. Mas a leitura da frase completa não deixa lugar para dúvidas: só a possibilidade de ser um adjetivo permite à frase fazer sentido.
3. A ciência mostra
A investigação realizada em língua portuguesa, mostra o efeito facilitador do conhecimento - progressivamente mais explícito - da estrutura morfológica no reconhecimento de palavras e na escrita nos anos iniciais de escolarização. Na língua portuguesa, a escrita de um número significativo de palavras depende de estratégias fonológicas. Isto é, para as ler e escrever é suficiente identificar os sons que as constituem e fazer a conversão fonema/grafema. Trata-se de palavras cuja ortografia é regular, como, por exemplo, "panela" ou "bitola".
Noutras palavras, denominadas regulares-regra, além da identificação dos sons, é necessário conhecer regras de ortografia. Por exemplo, as palavras "cinema" ou "casota". Ou seja, é necessário saber que a letra C antes das letras I e E se lê /s/ e que a letra S entre vogais se lê /z/. Todavia, há também um número significativo de palavras de ortografia regular do tipo morfossintático que exigem conhecimentos morfológicos e sintáticos. Por exemplo, se a palavra "laranja" só pode ser escrita com a letra J, a palavra "laranjeira" só pode ser grafada com a letra J, que pertence ao radical, e não com a letra G - permitida do ponto de vista fonológico.
Estudos realizados no sentido de identificar os efeitos do ensino explícito da morfologia no desempenho em leitura - identificação de palavras, compreensão - apontam para a obtenção de melhores resultados junto de crianças mais novas do pré-escolar, de alunos com dificuldades, incluindo os resistentes a intervenções de ênfase fonológica, e na leitura de palavras não familiares. Os efeitos mais significativos são encontrados quando a intervenção é orientada para a identificação dos radicais (raízes das palavras) do que quando é orientada para a identificação dos afixos.
A investigação mostra também que os efeitos da promoção do conhecimento morfológico e sintático são mais evidentes quando este é promovido em programas relativamente prolongados no tempo e abrangentes, isto é, que abordam todas as vertentes do desenvolvimento linguístico (léxico, fonologia, morfologia, sintaxe e pragmática).
Autoria: Fernanda Leopoldina Viana e Iolanda Ribeiro Edição: Andreia Lobo
Publicação: 22.setembro.2020
Margarida, uma menina de cinco anos, explicava que a pera vinha da pereira, a maçã da macieira, e as nozes da "nozeira". Este tipo de produção, se bem que seja um erro, indica que a criança está atenta à linguagem oral, que extraiu a regra e que a aplica bem. Falta-lhe apenas aprender o contexto de exceção. É, por isso, um sinal muito positivo e revelador não só da capacidade de atenção e de efetuar inferências, mas também da aquisição de regras morfológicas. O mesmo ocorre em produções como "cãos" ou "faroles".
As crianças apropriam-se da sua língua materna sem necessidade de “lições” de gramática. Convidar as crianças a refletir sobre as menores unidades de sentido da língua permite dirigir a sua atenção para os radicais das palavras e para as suas possibilidades combinatórias. Muitas das palavras desconhecidas que aparecem, por exemplo, nos manuais escolares são palavras morfologicamente complexas e maioritariamente derivadas. Levar as crianças a descobrir os aspetos morfológicos ajuda a promover a expansão do vocabulário e facilita a compreensão da leitura.
Para entender o significado de uma palavra nova, as crianças usam os conhecimentos morfológicos que possuem. Quando “inventam” palavras também estão a usar esses conhecimentos morfológicos. Exemplo: uma criança convidada a olhar para o tamanho do focinho de um cão argumenta que ele não tem um focinho, mas um "foço", já que, em seu entender, se tratava de um focinho demasiado grande para poder merecer o que ela inferia ser o sufixo -inho. O mesmo princípio deve ser adotado no que concerne à sintaxe.
Duarte, I. (2008). O conhecimento da língua: desenvolver a consciência linguística. Lisboa: Ministério da Educação, DGIDC. http://area.dge.mec.pt/gramatica/O_conhecimento_da_lingua_desenv_consciencia_linguistica.pdf
Gonçalves, F., Guerreiro, P., & Freitas, M. J. (2011). Conhecimento da língua. Percursos de desenvolvimento. Lisboa: Ministério da Educação, DGIDC. http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Basico/Documentos/conhec_lingua.pdf
Menyuk, P., & Brisk, M. E. (2005). Language development and education. Children with varying language experiences. Hampshire, U. K: Palgrave MacMillan.
Sim-Sim, I., Silva, A. C., & Nunes C. (2008). Linguagem e comunicação no Jardim-de Infância. Lisboa: Ministério da Educação, DGIDC. https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/EInfancia/documentos/linguagem_comunicacao_jardim_infancia.pdf
Viana, F. L. & Ribeiro, I. (2017) (Coords.). Falar, ler e escrever. Propostas integradoras para Jardim de Infância (2ª Ed.). Maia: Lusoinfo Multimédia.
A aprendizagem da leitura/escrita implica a aprendizagem de um sistema de signos gráficos que representam a fala e o desenvolvimento de conhecimentos e habilidades que possibilitem a compreensão do que se lê e a capacidade de expressão através da escrita. Por isso, o sucesso nesta aprendizagem é influenciado pela condição em que cada criança se encontra quando inicia a escolaridade, em particular pelo seu desenvolvimento linguístico e pelo contacto prévio que teve com a escrita.